segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Insônia


A madrugada caminha, tão senil, que o jovem insone não percebe o leve resvalar das horas. O tempo está frio, o que é comum nas madrugadas de sua vida, algumas nuvens espessas encobrem o céu tingido de azul escuro. Ele, claro, não vê a movimentação das nuvens. O corpo dói, tomado pelo cansaço das atividades do dia anterior, mas o sono não aparece. Faz dias que o sono não aparece. Talvez por isso esteja tão irritado, desequilibrado nos afazeres da vida, esquecendo as coisas com facilidade e exasperando seus parceiros. Passa as noites lendo. Hoje está acompanhado por Faulkner. Escuta um pouco de música, gosta de punk – rock.

Do lado de fora, nas ruas desertas, um jovem dorme sob o firmamento traiçoeiro, sonhando que está diante de Deus, pedindo a ele para que guarde a chuva para a tarde do dia seguinte. Consumido pela embriaguez da fome e pela tortura do vício, não consegue encarar a noite com os olhos abertos. Não dorme no chão, mas no banco esverdeado da única praça do bairro. Gostaria que o sol não voltasse, as noites são tão melhores.

Antes dos primeiros raios do sol, o telefone da sala toca. Ele atende sem pressa, sabendo do que se tratava a chamada desde o início a noite. Por uma instante pensa em desistir de tudo, enquanto olha o horizonte se pintar com as tonalidades mais idílicas entre o amarelo e o rosa. Vai até a varanda, não entende a separação entre os prédios imponentes e a rua pálida. “Os prédios tentam ser cidades à parte”, pensou, com a ira da injustiça pregada aos olhos. Vestiu uma calça jeans surrada, calçou o tênis que só usava para praticar corridas e, no armário, escondido detrás das latas de conserva, pegou o pequeno revólver, eterno companheiro, e saiu para o trabalho.

Acordou com o corpo em frangalhos, os músculos moídos pela adversidade do ambiente e a boca encharcada com um estranho gosto de ferro. Não se levantou logo, olhando o céu e as árvores, pensando em comida e lembrando que tinha de arranjar o dinheiro para pagar os caras do “pó”. Estava tão absorto que demorou a perceber a cagada de pássaros que recebera durante a noite. Decidiu se lavar. Olhou para os lados e viu o medo. Uma pequena arma apontada para sua cabeça e uma voz doce, cálida, a dizer:

- Tem meu dinheiro???

- Mas... Ma... O prazo... É até, até... Amanhã. – disse apavorado o mendigo.

- Eu decido os prazos. - disse com prazer o jovem vestido com jeans surradas e tênis esportivos.

O mendigo não pode falar mais nada. O disparo silencioso sufocou as últimas tentativas de explicação. O rapaz guardou a arma, olhou o céu, pensou em comprar cigarros e iniciou uma caminhada até o centro da cidade. Na primeira farmácia que avistou, entrou e comprou remédios para fazer dormir.


Mauricio Mayckon

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lirismo


Outro dia vi passar algo
Tão próximo e lindo
Tão sem cores
Tão sem qualidades
Tão sem diferenças
Que perguntei ao outro eu que tenho:
Que é aquilo que encanta? Simples e Lírico
Fosco de lembranças e atitudes
Amputado de palavras, de traduções?
Diferente do resto
Despojado de fonemas, grafemos
Verbos duros e estratagemas?
Perguntei de novo: Que é aquilo que desespera?
Tira o sonho de dentro do sono
Numa eterna tortura de sonhar acordado,
De destruir os pensamentos sérios de um jovem impressionado?
A resposta é simples, que nem criança comendo doce:
É o dorso da morena menina
Salpicado de sol
Que caminha, apenas por caminhar
E paralisa por alguns segundos
Todos os tolos que ainda sonham
Em algum dia amar.




Mauricio Mayckon...

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Uma saga na aldeia pensante



Na esquerda, uma sorridente toupeira se alegra com sua capacidade textual, ela consegue a estrutura, a verve, a sensação de dever comprido. Já na direita, uma pesada anta carrega nos bolsos da sua jaqueta sua libertação pro mundo: um celular. De fronte ao interlocutor que vos escreve, a besta quadrada se ocupa de sua posição geométrica. Aliada a ela o condor desesperado e gordo, espia por trás dos seus grandes óculos o movimento dessa fauna pós-moderna. Sei, talvez tenha faltado o cão, esse animal dócil e demasiado fiel, ele anda hoje sereno e pensativo, se importando, provavelmente, com a condição dos outros da aldeia.


Continua...


Alexandre Grecco, 2007, em um zoológico qualquer.




segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As sombras


A noite foi longa. Mayara caminha sem pressa sobre a calçada. Os saltos incomodam e o sol aos poucos preenche o esconderijo das sombras. Alguns passantes olham Mayara com olhos de padre. Ela é grande, incomum. Não há outra definição. Parceiras da noite trocam acenos e sorrisos com ela, perguntam se a noite foi boa. A noite não é uma criança, não há bondade alguma nela.

Mayara sacoleja o pandeiro enquanto anda. Os moradores de rua conhecem seu caminho, suas estórias, as brigas com navalha. Ela tem uma cicatriz no abdômen, já levou bala na perna esquerda, e apanhou muito pela vida afora. Gosta de Blues, Cross Road, mas o ritmo de sua existência é o brega dos anos 60. Mayara se fez mito nas noites escondidas.

Um velho ameaça correr atrás dela, o sol desfaz a aura de mistério e poder que só a lua permite. O corpo dói, consumido pelas exaltações furiosas das células, tem cheiro de sangue. A carne apodrece aos poucos, pensa ela de vez em quando. Olha a cidade, sabe que todos estão a olhá-la. Tem o forte desejo de beber vodca, nada melhor pela manhã. Numa esquina imunda compra flores, prefere flores a animais; prefere flores a pessoas. Finalmente chega ao seu prédio, foge da chuva que começa a cair.

- Oi, seu Luiz. – diz Mayara.
- Oi. – diz o porteiro do prédio, com a brasa viva da curiosidade nos olhos.

Ela entra no apartamento. Se desfaz dos saltos, arranca com fúria a peruca. Tira os colares, os brincos, a roupa toda. Banha-se, esfregando com garra o rosto para se livrar do brilho e da maquiagem pesada. Olha a cidade cambiante sendo apagada pela chuva. Tem impulsos niilistas. Veste o terno, a gravata, as calças de homem sério. Desce os degraus, odeia o elevador.

- Sua irmã chegou neste instante. Rapaz tira tua irmã da vida fácil. – disse o porteiro com pesar na voz.

- Eu tento seu Luiz, eu tento.




Mauricio Mayckon

domingo, 12 de agosto de 2007

Partidas!

A mala pronta, os sorrisos sem graça, os papos paralelos, as esperanças de retorno. A janela fria mostra os prédios, as pessoas alheias; tudo tempera as despedidas. Voltemos à verdade, o tempo dos suspensos já está por passar. A cidade quente se tornou fria durante esses 15 dias, e agora pertence apenas ao retrovisor do carro. Os túneis, o centro, a linha amarela, o maracanã, o que fica é doce, sabor de chá mate e bolinho de bacalhau. Nos copos de chope, ficam o DNA de esperança, de retorno, de quem sabe o mundo sorrir e nos fazer mais fáceis. Hoje fico com poucas palavras, afinal, tenho de terminar a arrumar as malas, não consigo achar minhas meias, acho que ficaram perdidas pelo quarto...
Alexandre Grecco, 2007, de retorno pro irremediável...

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Nimbus


Há alguns anos o tempo mudou. O tempo do homem, o tempo dos segundos, não tanto o tempo da natureza, pois este continua abrasivo. As coisas, tanto as palpáveis como as imaginárias, se agregam da passagem dos dias e anos e isso resulta no fim de alguns mistérios. O avô de Marconi é um homem sábio, enfrentou grandes baques na prolongada vida que não o quer deixar. Sentados em cadeiras duras, num semicírculo, todos ouvimos as histórias do velho que trabalhou somente em um lugar, sendo gerente de um banco, mas bem que poderia ser artista.

Seus olhos são unidos por sobrancelhas grossas e nevadas, tem as pupilas grandes e redondas e a voz de coronel. Não sabemos o nome dele. Ele é apenas o avô de Marconi. Beirando os noventa anos, o velho quer ficar sempre entre os jovens, diz com uma carga de crenças na voz: “A juventude espanta a mesmice da velhice solitária de um viúvo pensativo”. Suas estórias mesclam a antiga vida no interior do estado, onde os vaqueiros, as lendas e as mulheres de corpo delgado que se banham nuas nos rios da região se encontram como em um sonho cálido.

Ele me lembra, pelo jeito de poeta e as idéias distantes, alguns filósofos e professores geniais. Esta noite o avô de Marconi nos contou sobre a guerra dos mendigos, acontecida quando ele era criança, que dizimou os vários mendigos da pequena cidade, tudo por que eles queriam poder entrar na igreja e não podiam. Nos despedimos felizes e irrequietos, pois dali a uma semana haveria outra seção, e seria justamente a estória do Lobilosomem que o velho viu quando jovem e que, segundo o próprio, lhe dera sorte para o resto da vida.

Não houve outra seção. Quando amanheceu, não havia mais o avô de Marconi. Fora embora durante a noite, deixando apenas o corpo imóvel e frio de um velhinho fraco. Encontraram em sua mão um pedaço amassado de papel, onde constava a seguinte e misteriosa frase: “A morte é somente um estratagema da vida, nada mais’. No enterro apareceram alguns vaqueiros e mulheres de corpo delgado, foi inevitável sorrir ao imaginar uma ponta de realidade em estórias tão despretenciosas.



Mauricio Mayckon

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

hoje; um lugar no ontem

Acordei um pouco mais pouco que ontem. Hoje é quinta e o filho da puta do vizinho inventa de ouvir música alta, sempre os mesmos sertanejos contando as mesmas mazelas. Coloco um Clapton pra limpar o ambiente blues before sunrise. Dou uma mijada, olho pro pau, não sei o porque do sangue, escovo os dentes, olho para o espelho e não acredito nas olheiras, três dias sem dormir direito. Não tem café, não tem pão, não tem uma porra de uma água na geladeira. Desço pra ver se encontro algo pra comer, no bar vizinho tem um queijo quente que não sei de onde vem e talvez pouco me importe a procedência, as coisas simplesmente são. Ter que recomeçar um dia é como ter que se desprender do sono, dos bocejos blues leave me alone. Vou a casa dela, como sempre faço, ia contar-lhe do sangue, mas a gente transa, responsabilidade nunca foi o meu forte e, outra; ela quer uma tal de união direta, não sei bem o que é isso, talvez tenha lido em algum auto-ajuda que ela empilha no trabalho. Me conta os problemas, os gastos, “vem pra cá amor!”, pro inferno, se soubesse como gosto de acordar. Eu passaria a eternidade dormindo, mas sou covarde demais pra morrer, talvez me matasse depois de sair da casa dela, mas vou ler revistinhas na banca, talvez anime meu dia goin’ away baby.

O centro da cidade é uma merda, muita gente, gente que nem sabe pra onde vai, de onde vem, o gado pasta. Eu compro uns livros, sobrou um trocado da minha rescisão, como não compro nada pra casa mesmo, levo um kerouac, falo assim em minúsculo por que não sou muito fã dele não, talvez tenha influenciado demais um monte de cabeças de vento, ninguém entendeu on the road e poucos leram vagabundos iluminados... Levei o livro dos sonhos, mas uma besteira dele, acabei lendo todo enquanto pegava o trem pra algum lugar mais lugar que ontem. Desci na esquina da casa dela, de onde tinha saído há poucas horas, talvez todos os caminhos me levem a ela groaning the blues. Dei o livro a ela, talvez sirva mais naquela cabecinha pós-pós-moderna. Voltei pra casa, talvez assim acertasse o caminho, comprei uma vodka, comprei alguma coisa do que resta, ouvi Clapton, motherless child, dormi pra esperar o amanhã e quem sabe acordar um pouco menos que hoje...
Alexandre Grecco, 2007