quinta-feira, 19 de julho de 2007

Pra quem não volta


Oi, amor.


Hoje eu tive que fazer os serviços de banco, a praça do Ferreira continua o mesmo formigueiro. Vi o César, ta bonito; parece ter superado a perda da mulher, você deveria ter visto, foi uma tristeza só; todos os amigos estavam no enterro, “climão”, eu decidi não ir, você sabe como eu fico boba em enterros. A conversa foi curta, ele estava pra fazer uma corrida, esperando uma cliente em um desses prédios de escritórios. Olhe, eu não vi o extrato da Caixa Econômica, mas passei no Banco do Brasil; cobri o cheque do conserto da moto do Fabinho. E você como está? Acho que você deveria repensar sua profissão, nem sempre é bom estar na estrada, eu sei, eu sei: - nada no mundo me tira da estrada. Você tem assistido TV demais né amor? Nunca lhe vi falando essas coisas românticas, de estradas, pessoas, lugares, enfim... Tenho medo, muito medo. Sabe de quê? De não lhe ver mais, essas estradas andam perigosas e você sem mim, aí sozinho, tenho tanto medo amor. Lembra da última vez que você passou por aqui, já faz dois meses e parece que nada mudou; teu perfume ainda me vem depois do chá, quando você me agarrava na cozinha lembra? O Fabinho no quarto, nossa, eu morria de vergonha...
Maria Auxiliadora dos Santos Silva (Brasileira), Fortaleza, mês das sombras, um dia do ano.
Alexandre Grecco, 2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Sinfonia do fim do mundo


Como cão sem dono, daqueles atolados de pulgas e viradores competentes de latas de lixo, Franjão passa as todas as noites, as frias e as quentes, andando pela cidade escura e tosca. Ele caminha pelos becos aziagos, dominados por quadrilhas de mendigos famintos que lutam entre si pela necessidade de possuir alguma coisa, nem que seja um beco imundo, colorido com as tonalidades estranhas do lodo.

Trajando bermudas esverdeadas pelo tempo, camisa estampada com o rosto de um ídolo pop, dezenas de cordões e bijuterias simples, dedos tortos decorados com anéis de caveira, dentes amarelados devido ao tabaco feroz que consome, único companheiro de trajetória tão lírica. Ele mora num desvão inclinado, entre a Rua da Laranja e a Avenida Beija-flor, dorme de dia e avacalha a vida durante as madrugadas.

Come as gororobas mais acessíveis, tendo paladar refinado, conhecedor que é das comidas ruins distingue bem o gosto das coisas. Bebe a água das fontes públicas, a cachaça barata e deliciosa feita pelos marginais do Beco Aurora. Carrega consigo, sem medo de sonhar, um violão velho que encontrou destroçado num latão de lixo, e canta como um anjo.

Sua voz tem ares de poesia, prega no ar úmido da madrugada uma noção estranha de santidade. Nunca ouvi coisa melhor. Ele canta de tudo. Bossa, rock, o pop velho e sem dentes da atualidade. Os mendigos, os homens-ratos, as mulheres decrépitas e avantajadas, que desprendem um cheiro forte de sexo, os zumbis esquecidos, habitantes da noite, todos param para ouvir a música salvadora do violão encantado.



Mauricio Mayckon...

Mãos


O corpo passeia
Por entre certas mãos cálidas
Gritam as células, os músculos, as traquéias
Tem graça o corpo
É de graça o carinho
Que faz bem ao coração
E o mesmo corpo balança, dança
Colocado entre certas mãos incertas
Num contato frágil
Rosado
Fica rubra a pele
Os olhos escorrem
A respiração se angustia
E os dedos pequenos
Trançados em conjunto
Apalpam sem pecado o
Corpo alvo, deleitoso
Da sensível prima.



Mauricio Mayckon...

segunda-feira, 2 de julho de 2007


Lilá não estranhava meus atrasos para as reuniões do grupo, ela sabia que eu estaria num café ou livraria qualquer, procurando por algum capuccino que contivesse um aroma ou sabor diferente, ou mesmo um almanaque velho, que sempre se encontravam nas últimas prateleiras das livrarias. Uma vez encontrei um guia de turismo na Itália, dei de presente a Lino, afinal, era dos italianos que Lino descendia e não cabia a mim no grupo uma descoberta precoce da beleza Romana, culinária sciliana e mulheres milanesas. Lino aprendeu algumas receitas que futuramente nos fizeram ir aos céus, comer bem é estar perto de Deus, repetia Lino sempre que fazia o macarrão a gorgonzola.



Quando chegava à porta de Lino, já podia escutar os acordes saídos da vitrola de Sonny, um jazz, cool, Coltrane e nada mais. Gagá sempre estava metida em alguma religião pagã e explicava a alguém que estivesse com paciência suficiente para entrar em nirvana, mantra, suka e etecetera, etecetera. Dado, por ser o mais velho, sempre escutava com atenção, até um dia tentou participar de uma aula de ioga, mas não foi adiante, a professora não permitia que trouxessem bebidas para a academia. Eu não tinha muita paciência com Gagá, aliás, nunca tive muita paciência com as religiões, “você tem que encontrar uma desculpa pra essa merda Alex. Tudo isso tem de ter uma explicação e se não é em Nietzsche, que seja em Jesus”, aconselhava Sonny antes de voltar a escutar os solos de Teddy Wilson.



Metia-me nas reuniões mais para beber e poder ouvir besteiras; as divagações quanto às saídas do capitalismo, a solução para a comunicação, as propostas para o próximo milênio; vez ou outra alguém trazia maconha e, de certa forma, o assunto melhorava. Sonny cuidava sempre da vitrola e de Big Bill Broonzy, Miles Davis, Chu Berry e Benny Carter. Eu cuidava de mim e de um escritor solitário, que vivia entre gatos de várias cores; um ser magro e solitário que residia na minha barriga, contando as palavras.


-Não gosto de repetir essa história


-Mas às vezes é necessário Alex – dizia Gagá – você precisa se prender a algo.


-Minha mãe dizia isso. Você tem que parar de ler essas besteiras; Deusa mãe, pai terra, gaya e etc, que espécie de Deus você acha que vai encontrar? Um senhor de barba branca e raios nas mãos, ou melhor: uma senhora de chapéu pontudo dizendo ser a essência da natureza? Os irlandeses criaram essas porcarias por causa do uísque, se você bebesse menos dessa droga, talvez entenderia que Deus é uma poça d’água, tão comum nos dias chuvosos.



Olhava as construções, as favelas retorcidas, arranha céus, rostos. Naquele tempo os rostos eram menos parecidos, as pessoas tinham mais originalidade, ou não. Gostava de pegar o metrô das onze e meia, era vago, as pessoas que transitavam eram misteriosamente diferentes, continham algum segredo entre os dentes. Eu descobria os sexos e as ações de cada um: o senhor que não conseguia manter o olhar longe do traseiro da doméstica que preferia voltar pra casa em pé - provavelmente por causa do salto, assim mantinha a bunda mais empinada -, a senhora que gostava de passear pela cidade de madrugada, visitando os pontos do metrô, dando para alguns mendigos e vigias. Toda essa cidade pulsava um fluxo único, e eu pensava em Lilá.



Nunca me cansei de suas besteiras, e ela as dizia, sem pudor, perguntava quem era Dostoievski e Kafka, lia Keats e pensava ser Joyce. Todos se mantinham constrangidos e estupefatos, quem teria a coragem de falar tais besteiras? Talvez alguém como Lilá, que pouco tinha a perder e pouco se importava com as opiniões, isso aos poucos conquistou o grupo, que não existia mais sem ela e suas ervas.


-Camomila meu bem.


-Eu não gosto de Camomila.


-Tem de aprender a gostar, lhe fará bem, assim como fez a Sonny.


-Você dormiu com Sonny?


-Dei um chá, apenas. A você que tenho dado outras coisas...



Era sempre no mesmo hotel, na rua da Independência, perto do café image, preço bom, poucas pulgas, desinfetante de limão e algumas camisinhas duvidosas. Depois o cigarro, alguma conversa suspensa sobre os vinhos argentinos, Lilá acreditava na supremacia da uva platina sobre os bons chilenos, “pouco você sabe dos Alpes querida”. Eu a explicara sobre a colheita da uva, os ciclos de frio diferente, o trato e a madeira de que eram feitos os tonéis que continham o sangue de Cristo. Ela se ria, talvez até acreditasse naquela erudição desnecessária, talvez acreditasse em nós ou mesmo em mim.



Os dias em Paris, Londres, Sevilha ou Quixadá, era sempre os mesmos dias onde se firmava as mesmas relações onde o universo era sempre o mesmo universo transverso as nossas idéias onde Lilás era sempre bela besta e burra onde Lino escrevia suas receitas e Sonny cantarolava seu blues onde Gagá rezava para algum ser distante que provavelmente não existia ou existiria em séculos de existência onde eu era eu bem menos do eu.

Alexandre Grecco, 2007.