segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Insônia


A madrugada caminha, tão senil, que o jovem insone não percebe o leve resvalar das horas. O tempo está frio, o que é comum nas madrugadas de sua vida, algumas nuvens espessas encobrem o céu tingido de azul escuro. Ele, claro, não vê a movimentação das nuvens. O corpo dói, tomado pelo cansaço das atividades do dia anterior, mas o sono não aparece. Faz dias que o sono não aparece. Talvez por isso esteja tão irritado, desequilibrado nos afazeres da vida, esquecendo as coisas com facilidade e exasperando seus parceiros. Passa as noites lendo. Hoje está acompanhado por Faulkner. Escuta um pouco de música, gosta de punk – rock.

Do lado de fora, nas ruas desertas, um jovem dorme sob o firmamento traiçoeiro, sonhando que está diante de Deus, pedindo a ele para que guarde a chuva para a tarde do dia seguinte. Consumido pela embriaguez da fome e pela tortura do vício, não consegue encarar a noite com os olhos abertos. Não dorme no chão, mas no banco esverdeado da única praça do bairro. Gostaria que o sol não voltasse, as noites são tão melhores.

Antes dos primeiros raios do sol, o telefone da sala toca. Ele atende sem pressa, sabendo do que se tratava a chamada desde o início a noite. Por uma instante pensa em desistir de tudo, enquanto olha o horizonte se pintar com as tonalidades mais idílicas entre o amarelo e o rosa. Vai até a varanda, não entende a separação entre os prédios imponentes e a rua pálida. “Os prédios tentam ser cidades à parte”, pensou, com a ira da injustiça pregada aos olhos. Vestiu uma calça jeans surrada, calçou o tênis que só usava para praticar corridas e, no armário, escondido detrás das latas de conserva, pegou o pequeno revólver, eterno companheiro, e saiu para o trabalho.

Acordou com o corpo em frangalhos, os músculos moídos pela adversidade do ambiente e a boca encharcada com um estranho gosto de ferro. Não se levantou logo, olhando o céu e as árvores, pensando em comida e lembrando que tinha de arranjar o dinheiro para pagar os caras do “pó”. Estava tão absorto que demorou a perceber a cagada de pássaros que recebera durante a noite. Decidiu se lavar. Olhou para os lados e viu o medo. Uma pequena arma apontada para sua cabeça e uma voz doce, cálida, a dizer:

- Tem meu dinheiro???

- Mas... Ma... O prazo... É até, até... Amanhã. – disse apavorado o mendigo.

- Eu decido os prazos. - disse com prazer o jovem vestido com jeans surradas e tênis esportivos.

O mendigo não pode falar mais nada. O disparo silencioso sufocou as últimas tentativas de explicação. O rapaz guardou a arma, olhou o céu, pensou em comprar cigarros e iniciou uma caminhada até o centro da cidade. Na primeira farmácia que avistou, entrou e comprou remédios para fazer dormir.


Mauricio Mayckon

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Lirismo


Outro dia vi passar algo
Tão próximo e lindo
Tão sem cores
Tão sem qualidades
Tão sem diferenças
Que perguntei ao outro eu que tenho:
Que é aquilo que encanta? Simples e Lírico
Fosco de lembranças e atitudes
Amputado de palavras, de traduções?
Diferente do resto
Despojado de fonemas, grafemos
Verbos duros e estratagemas?
Perguntei de novo: Que é aquilo que desespera?
Tira o sonho de dentro do sono
Numa eterna tortura de sonhar acordado,
De destruir os pensamentos sérios de um jovem impressionado?
A resposta é simples, que nem criança comendo doce:
É o dorso da morena menina
Salpicado de sol
Que caminha, apenas por caminhar
E paralisa por alguns segundos
Todos os tolos que ainda sonham
Em algum dia amar.




Mauricio Mayckon...

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Uma saga na aldeia pensante



Na esquerda, uma sorridente toupeira se alegra com sua capacidade textual, ela consegue a estrutura, a verve, a sensação de dever comprido. Já na direita, uma pesada anta carrega nos bolsos da sua jaqueta sua libertação pro mundo: um celular. De fronte ao interlocutor que vos escreve, a besta quadrada se ocupa de sua posição geométrica. Aliada a ela o condor desesperado e gordo, espia por trás dos seus grandes óculos o movimento dessa fauna pós-moderna. Sei, talvez tenha faltado o cão, esse animal dócil e demasiado fiel, ele anda hoje sereno e pensativo, se importando, provavelmente, com a condição dos outros da aldeia.


Continua...


Alexandre Grecco, 2007, em um zoológico qualquer.




segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As sombras


A noite foi longa. Mayara caminha sem pressa sobre a calçada. Os saltos incomodam e o sol aos poucos preenche o esconderijo das sombras. Alguns passantes olham Mayara com olhos de padre. Ela é grande, incomum. Não há outra definição. Parceiras da noite trocam acenos e sorrisos com ela, perguntam se a noite foi boa. A noite não é uma criança, não há bondade alguma nela.

Mayara sacoleja o pandeiro enquanto anda. Os moradores de rua conhecem seu caminho, suas estórias, as brigas com navalha. Ela tem uma cicatriz no abdômen, já levou bala na perna esquerda, e apanhou muito pela vida afora. Gosta de Blues, Cross Road, mas o ritmo de sua existência é o brega dos anos 60. Mayara se fez mito nas noites escondidas.

Um velho ameaça correr atrás dela, o sol desfaz a aura de mistério e poder que só a lua permite. O corpo dói, consumido pelas exaltações furiosas das células, tem cheiro de sangue. A carne apodrece aos poucos, pensa ela de vez em quando. Olha a cidade, sabe que todos estão a olhá-la. Tem o forte desejo de beber vodca, nada melhor pela manhã. Numa esquina imunda compra flores, prefere flores a animais; prefere flores a pessoas. Finalmente chega ao seu prédio, foge da chuva que começa a cair.

- Oi, seu Luiz. – diz Mayara.
- Oi. – diz o porteiro do prédio, com a brasa viva da curiosidade nos olhos.

Ela entra no apartamento. Se desfaz dos saltos, arranca com fúria a peruca. Tira os colares, os brincos, a roupa toda. Banha-se, esfregando com garra o rosto para se livrar do brilho e da maquiagem pesada. Olha a cidade cambiante sendo apagada pela chuva. Tem impulsos niilistas. Veste o terno, a gravata, as calças de homem sério. Desce os degraus, odeia o elevador.

- Sua irmã chegou neste instante. Rapaz tira tua irmã da vida fácil. – disse o porteiro com pesar na voz.

- Eu tento seu Luiz, eu tento.




Mauricio Mayckon

domingo, 12 de agosto de 2007

Partidas!

A mala pronta, os sorrisos sem graça, os papos paralelos, as esperanças de retorno. A janela fria mostra os prédios, as pessoas alheias; tudo tempera as despedidas. Voltemos à verdade, o tempo dos suspensos já está por passar. A cidade quente se tornou fria durante esses 15 dias, e agora pertence apenas ao retrovisor do carro. Os túneis, o centro, a linha amarela, o maracanã, o que fica é doce, sabor de chá mate e bolinho de bacalhau. Nos copos de chope, ficam o DNA de esperança, de retorno, de quem sabe o mundo sorrir e nos fazer mais fáceis. Hoje fico com poucas palavras, afinal, tenho de terminar a arrumar as malas, não consigo achar minhas meias, acho que ficaram perdidas pelo quarto...
Alexandre Grecco, 2007, de retorno pro irremediável...

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Nimbus


Há alguns anos o tempo mudou. O tempo do homem, o tempo dos segundos, não tanto o tempo da natureza, pois este continua abrasivo. As coisas, tanto as palpáveis como as imaginárias, se agregam da passagem dos dias e anos e isso resulta no fim de alguns mistérios. O avô de Marconi é um homem sábio, enfrentou grandes baques na prolongada vida que não o quer deixar. Sentados em cadeiras duras, num semicírculo, todos ouvimos as histórias do velho que trabalhou somente em um lugar, sendo gerente de um banco, mas bem que poderia ser artista.

Seus olhos são unidos por sobrancelhas grossas e nevadas, tem as pupilas grandes e redondas e a voz de coronel. Não sabemos o nome dele. Ele é apenas o avô de Marconi. Beirando os noventa anos, o velho quer ficar sempre entre os jovens, diz com uma carga de crenças na voz: “A juventude espanta a mesmice da velhice solitária de um viúvo pensativo”. Suas estórias mesclam a antiga vida no interior do estado, onde os vaqueiros, as lendas e as mulheres de corpo delgado que se banham nuas nos rios da região se encontram como em um sonho cálido.

Ele me lembra, pelo jeito de poeta e as idéias distantes, alguns filósofos e professores geniais. Esta noite o avô de Marconi nos contou sobre a guerra dos mendigos, acontecida quando ele era criança, que dizimou os vários mendigos da pequena cidade, tudo por que eles queriam poder entrar na igreja e não podiam. Nos despedimos felizes e irrequietos, pois dali a uma semana haveria outra seção, e seria justamente a estória do Lobilosomem que o velho viu quando jovem e que, segundo o próprio, lhe dera sorte para o resto da vida.

Não houve outra seção. Quando amanheceu, não havia mais o avô de Marconi. Fora embora durante a noite, deixando apenas o corpo imóvel e frio de um velhinho fraco. Encontraram em sua mão um pedaço amassado de papel, onde constava a seguinte e misteriosa frase: “A morte é somente um estratagema da vida, nada mais’. No enterro apareceram alguns vaqueiros e mulheres de corpo delgado, foi inevitável sorrir ao imaginar uma ponta de realidade em estórias tão despretenciosas.



Mauricio Mayckon

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

hoje; um lugar no ontem

Acordei um pouco mais pouco que ontem. Hoje é quinta e o filho da puta do vizinho inventa de ouvir música alta, sempre os mesmos sertanejos contando as mesmas mazelas. Coloco um Clapton pra limpar o ambiente blues before sunrise. Dou uma mijada, olho pro pau, não sei o porque do sangue, escovo os dentes, olho para o espelho e não acredito nas olheiras, três dias sem dormir direito. Não tem café, não tem pão, não tem uma porra de uma água na geladeira. Desço pra ver se encontro algo pra comer, no bar vizinho tem um queijo quente que não sei de onde vem e talvez pouco me importe a procedência, as coisas simplesmente são. Ter que recomeçar um dia é como ter que se desprender do sono, dos bocejos blues leave me alone. Vou a casa dela, como sempre faço, ia contar-lhe do sangue, mas a gente transa, responsabilidade nunca foi o meu forte e, outra; ela quer uma tal de união direta, não sei bem o que é isso, talvez tenha lido em algum auto-ajuda que ela empilha no trabalho. Me conta os problemas, os gastos, “vem pra cá amor!”, pro inferno, se soubesse como gosto de acordar. Eu passaria a eternidade dormindo, mas sou covarde demais pra morrer, talvez me matasse depois de sair da casa dela, mas vou ler revistinhas na banca, talvez anime meu dia goin’ away baby.

O centro da cidade é uma merda, muita gente, gente que nem sabe pra onde vai, de onde vem, o gado pasta. Eu compro uns livros, sobrou um trocado da minha rescisão, como não compro nada pra casa mesmo, levo um kerouac, falo assim em minúsculo por que não sou muito fã dele não, talvez tenha influenciado demais um monte de cabeças de vento, ninguém entendeu on the road e poucos leram vagabundos iluminados... Levei o livro dos sonhos, mas uma besteira dele, acabei lendo todo enquanto pegava o trem pra algum lugar mais lugar que ontem. Desci na esquina da casa dela, de onde tinha saído há poucas horas, talvez todos os caminhos me levem a ela groaning the blues. Dei o livro a ela, talvez sirva mais naquela cabecinha pós-pós-moderna. Voltei pra casa, talvez assim acertasse o caminho, comprei uma vodka, comprei alguma coisa do que resta, ouvi Clapton, motherless child, dormi pra esperar o amanhã e quem sabe acordar um pouco menos que hoje...
Alexandre Grecco, 2007

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Pra quem não volta


Oi, amor.


Hoje eu tive que fazer os serviços de banco, a praça do Ferreira continua o mesmo formigueiro. Vi o César, ta bonito; parece ter superado a perda da mulher, você deveria ter visto, foi uma tristeza só; todos os amigos estavam no enterro, “climão”, eu decidi não ir, você sabe como eu fico boba em enterros. A conversa foi curta, ele estava pra fazer uma corrida, esperando uma cliente em um desses prédios de escritórios. Olhe, eu não vi o extrato da Caixa Econômica, mas passei no Banco do Brasil; cobri o cheque do conserto da moto do Fabinho. E você como está? Acho que você deveria repensar sua profissão, nem sempre é bom estar na estrada, eu sei, eu sei: - nada no mundo me tira da estrada. Você tem assistido TV demais né amor? Nunca lhe vi falando essas coisas românticas, de estradas, pessoas, lugares, enfim... Tenho medo, muito medo. Sabe de quê? De não lhe ver mais, essas estradas andam perigosas e você sem mim, aí sozinho, tenho tanto medo amor. Lembra da última vez que você passou por aqui, já faz dois meses e parece que nada mudou; teu perfume ainda me vem depois do chá, quando você me agarrava na cozinha lembra? O Fabinho no quarto, nossa, eu morria de vergonha...
Maria Auxiliadora dos Santos Silva (Brasileira), Fortaleza, mês das sombras, um dia do ano.
Alexandre Grecco, 2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Sinfonia do fim do mundo


Como cão sem dono, daqueles atolados de pulgas e viradores competentes de latas de lixo, Franjão passa as todas as noites, as frias e as quentes, andando pela cidade escura e tosca. Ele caminha pelos becos aziagos, dominados por quadrilhas de mendigos famintos que lutam entre si pela necessidade de possuir alguma coisa, nem que seja um beco imundo, colorido com as tonalidades estranhas do lodo.

Trajando bermudas esverdeadas pelo tempo, camisa estampada com o rosto de um ídolo pop, dezenas de cordões e bijuterias simples, dedos tortos decorados com anéis de caveira, dentes amarelados devido ao tabaco feroz que consome, único companheiro de trajetória tão lírica. Ele mora num desvão inclinado, entre a Rua da Laranja e a Avenida Beija-flor, dorme de dia e avacalha a vida durante as madrugadas.

Come as gororobas mais acessíveis, tendo paladar refinado, conhecedor que é das comidas ruins distingue bem o gosto das coisas. Bebe a água das fontes públicas, a cachaça barata e deliciosa feita pelos marginais do Beco Aurora. Carrega consigo, sem medo de sonhar, um violão velho que encontrou destroçado num latão de lixo, e canta como um anjo.

Sua voz tem ares de poesia, prega no ar úmido da madrugada uma noção estranha de santidade. Nunca ouvi coisa melhor. Ele canta de tudo. Bossa, rock, o pop velho e sem dentes da atualidade. Os mendigos, os homens-ratos, as mulheres decrépitas e avantajadas, que desprendem um cheiro forte de sexo, os zumbis esquecidos, habitantes da noite, todos param para ouvir a música salvadora do violão encantado.



Mauricio Mayckon...

Mãos


O corpo passeia
Por entre certas mãos cálidas
Gritam as células, os músculos, as traquéias
Tem graça o corpo
É de graça o carinho
Que faz bem ao coração
E o mesmo corpo balança, dança
Colocado entre certas mãos incertas
Num contato frágil
Rosado
Fica rubra a pele
Os olhos escorrem
A respiração se angustia
E os dedos pequenos
Trançados em conjunto
Apalpam sem pecado o
Corpo alvo, deleitoso
Da sensível prima.



Mauricio Mayckon...

segunda-feira, 2 de julho de 2007


Lilá não estranhava meus atrasos para as reuniões do grupo, ela sabia que eu estaria num café ou livraria qualquer, procurando por algum capuccino que contivesse um aroma ou sabor diferente, ou mesmo um almanaque velho, que sempre se encontravam nas últimas prateleiras das livrarias. Uma vez encontrei um guia de turismo na Itália, dei de presente a Lino, afinal, era dos italianos que Lino descendia e não cabia a mim no grupo uma descoberta precoce da beleza Romana, culinária sciliana e mulheres milanesas. Lino aprendeu algumas receitas que futuramente nos fizeram ir aos céus, comer bem é estar perto de Deus, repetia Lino sempre que fazia o macarrão a gorgonzola.



Quando chegava à porta de Lino, já podia escutar os acordes saídos da vitrola de Sonny, um jazz, cool, Coltrane e nada mais. Gagá sempre estava metida em alguma religião pagã e explicava a alguém que estivesse com paciência suficiente para entrar em nirvana, mantra, suka e etecetera, etecetera. Dado, por ser o mais velho, sempre escutava com atenção, até um dia tentou participar de uma aula de ioga, mas não foi adiante, a professora não permitia que trouxessem bebidas para a academia. Eu não tinha muita paciência com Gagá, aliás, nunca tive muita paciência com as religiões, “você tem que encontrar uma desculpa pra essa merda Alex. Tudo isso tem de ter uma explicação e se não é em Nietzsche, que seja em Jesus”, aconselhava Sonny antes de voltar a escutar os solos de Teddy Wilson.



Metia-me nas reuniões mais para beber e poder ouvir besteiras; as divagações quanto às saídas do capitalismo, a solução para a comunicação, as propostas para o próximo milênio; vez ou outra alguém trazia maconha e, de certa forma, o assunto melhorava. Sonny cuidava sempre da vitrola e de Big Bill Broonzy, Miles Davis, Chu Berry e Benny Carter. Eu cuidava de mim e de um escritor solitário, que vivia entre gatos de várias cores; um ser magro e solitário que residia na minha barriga, contando as palavras.


-Não gosto de repetir essa história


-Mas às vezes é necessário Alex – dizia Gagá – você precisa se prender a algo.


-Minha mãe dizia isso. Você tem que parar de ler essas besteiras; Deusa mãe, pai terra, gaya e etc, que espécie de Deus você acha que vai encontrar? Um senhor de barba branca e raios nas mãos, ou melhor: uma senhora de chapéu pontudo dizendo ser a essência da natureza? Os irlandeses criaram essas porcarias por causa do uísque, se você bebesse menos dessa droga, talvez entenderia que Deus é uma poça d’água, tão comum nos dias chuvosos.



Olhava as construções, as favelas retorcidas, arranha céus, rostos. Naquele tempo os rostos eram menos parecidos, as pessoas tinham mais originalidade, ou não. Gostava de pegar o metrô das onze e meia, era vago, as pessoas que transitavam eram misteriosamente diferentes, continham algum segredo entre os dentes. Eu descobria os sexos e as ações de cada um: o senhor que não conseguia manter o olhar longe do traseiro da doméstica que preferia voltar pra casa em pé - provavelmente por causa do salto, assim mantinha a bunda mais empinada -, a senhora que gostava de passear pela cidade de madrugada, visitando os pontos do metrô, dando para alguns mendigos e vigias. Toda essa cidade pulsava um fluxo único, e eu pensava em Lilá.



Nunca me cansei de suas besteiras, e ela as dizia, sem pudor, perguntava quem era Dostoievski e Kafka, lia Keats e pensava ser Joyce. Todos se mantinham constrangidos e estupefatos, quem teria a coragem de falar tais besteiras? Talvez alguém como Lilá, que pouco tinha a perder e pouco se importava com as opiniões, isso aos poucos conquistou o grupo, que não existia mais sem ela e suas ervas.


-Camomila meu bem.


-Eu não gosto de Camomila.


-Tem de aprender a gostar, lhe fará bem, assim como fez a Sonny.


-Você dormiu com Sonny?


-Dei um chá, apenas. A você que tenho dado outras coisas...



Era sempre no mesmo hotel, na rua da Independência, perto do café image, preço bom, poucas pulgas, desinfetante de limão e algumas camisinhas duvidosas. Depois o cigarro, alguma conversa suspensa sobre os vinhos argentinos, Lilá acreditava na supremacia da uva platina sobre os bons chilenos, “pouco você sabe dos Alpes querida”. Eu a explicara sobre a colheita da uva, os ciclos de frio diferente, o trato e a madeira de que eram feitos os tonéis que continham o sangue de Cristo. Ela se ria, talvez até acreditasse naquela erudição desnecessária, talvez acreditasse em nós ou mesmo em mim.



Os dias em Paris, Londres, Sevilha ou Quixadá, era sempre os mesmos dias onde se firmava as mesmas relações onde o universo era sempre o mesmo universo transverso as nossas idéias onde Lilás era sempre bela besta e burra onde Lino escrevia suas receitas e Sonny cantarolava seu blues onde Gagá rezava para algum ser distante que provavelmente não existia ou existiria em séculos de existência onde eu era eu bem menos do eu.

Alexandre Grecco, 2007.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Prato Feito de Domingo


Domingo era sempre a mesma coisa; salame italiano, cerveja preta e corrida de fórmula um. Esperava sempre que algum brasileiro superasse as expectativas da sua semana enfadonha. Depois de mais um dos fracassos, pedia a um dos meninos que buscasse mais cerveja e mantivesse o sorriso no rosto, talvez não existissem famílias assim, as crianças tem fome e desperdiçar comida e carinho é pecado diz o padre nos domingos que ela sempre acompanhava, era a oportunidade dela se ver livre e poder contar ao padre o caso que mantinha com o amigo do marido que assiste fórmula um. O padre a recriminava, eram vinte “ave marias” e dez “pai nossos” e mais um menino no seu quarto, como é de costume dos padres e dos meninos. Almoço simples, feijão, mentira, arroz e uma carne de segunda, tudo era assim de segunda, como essa carne, como a carne da filha do açougueiro, que as vezes dava de cortesia carne de segunda “seu filho é muito respeitoso com minha filha seu Agenor” e Clarisse fugia das carnes e buscava seus amigos, brincava rodava e dava as coxas para que todos gozassem, mas só nas coxas, como um poema sujo. E ele agradecia e dizia “foi bem criado seu Carlos, muito obrigado pela carne, é pra amanhã depois da corrida”. Goiabada cascão, leite moça e o domingo se arrasta. Faustão e festa na praça, as mesmas pessoas e as mesmas cervejas quentes e espetinhos de gato. Depois a embriagez e mais algumas mentiras; o pau não sobe, a dor não passa e mais uma vez eu mijo sangue. Tomo um cachorro em pílula que me come por dentro. Às vezes rola até um baseado mais minha mãe e o amigo e a corrida e as coxas dela – tão quentes. O dia passa e mais uma vez segunda-feira nasce, fria, como nascem friamente cedo as segundas-feiras...


Alexandre Grecco, 2007

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Antes e depois do sol


De todas as imagens que surgem de não sei onde, nenhuma explica melhor esta estória que o gado esquelético e bambo, procurando água entre as depressões do terreno seco. Caetano Dodô acorda aos poucos, antes do nascer do sol e do cantar dos galos, na verdade os galos estão sem força e o canto que tentam soltar não acorda nem os bichos rasteiros. Caetano tem mulher cansada, sete filhos mal desenvolvidos, três bois doentes de fome, uma vaca que não dá leite e uma casa de barro e taquara no meio do sertão, sem rastros de humanidade ao redor.

A pele tostada pelo sol daquele fim de mundo tornou-se eternamente dura, rachada. A família inteira tinha o corpo mesquinho, fraco e os ossos bicudos apresentavam suas formas sob o couro curtido. Na casa não havia eletricidade nem boa comida. Mas o que mais aperreava a noção dura de realidade da senhora Cândida era a inexistência de uma espécie de vidro brilhoso, que vira a muitos anos na cidade, que refletia as pessoas e as coisas. Ela não sabia o nome de tal prodigiosa invenção: espelho.

Depois de Caetano, um por um dos habitantes da casa foram despertando. O dia reservava muito trabalho, esforço em dobro até, pois é data especial, a mais importante do ano, talvez a única que conheciam: Festas Juninas. Das regiões distantes viriam os amigos mais próximos para dançar e beber, talvez comer um pouco, se tivesse comida. Enquanto Caetano, com remorso e pena, sacrificaria um de seus bois, os meninos colheriam o pouco milho para a senhora Cândida, preocupada com sua aparência, pedindo ao Deus dos agricultores um vidro refletor mágico, preparar as delícias típicas.

Chegaram os convidados. Muitos e muitos. A mesa apresentava-se farta aos olhos incrédulos dos matutos. Bebida de sobra. Música boa. Uma fogueira gigante, das maiores já produzidas. As moças com os vestidos juninos, os cabelos em tranças, os rostos pintados, sedução demais para os pobres homens, que não tinham felicidade senão a de estar vivos e possuir mulheres. No dia seguinte, atordoados pela festança, fatigados pela ausência do mundo, ninguém lembrou de ir à missa. O padre não transmitiu sua ira aos pobres sertanejos. Ele estava ocupado, esquentando seu corpo frio com a brasa viva que era a pele mulata de Antonieta, debaixo das bandeirinhas coloridas de São João.



Mauricio Mayckon...

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Errante


Amar sem deixar de lado
Deixar amar o errado
Errar o erro do outro
Num espasmo apaixonado

Gritar balidos de raiva
Carregando uma flor lívida
Dançando bêbado numa esquina esquiva
À procura da amada

Que não está ali
Do outro lado da rua
Mas presente aqui

No coração bruto e selvagem
Que resiste incólume a toda tribulação
Mas desfalece em prantos nos descaminhos da paixão.



Mauricio Mayckon...

quarta-feira, 20 de junho de 2007

De cima do céu


Quando ele viu estava inerte, parecia que o tempo havia trocado de lugar com o espaço. Sentiu-se como um astronauta, as pessoas, elas estavam sob ele, perplexas, como a contemplar algo surreal, como constatarem o quanto era diferente. Seus pais estavam em casa quando souberam da notícia e correram para praça, os amigos próximos, quando chegaram ao local, começaram a bater palmas, como a compartilhar a alegria dele, um grupo de senhoras achou estranho e começaram a rezar, alguns poucos foram buscar seus instrumentos e fizeram uma banda para acompanha-lo. A praça agora vivia lotada, imprensa do mundo todo veio vê-lo; Alemanha, Argentina, Inglaterra, Espanha, Portugal, Itália, Estado Unidos, até um grupo de poloneses veio cobrir o feito...

Logo foi feito um documentário para o cinema, poucos lembraram que não havia cinema na cidade, mas que importa? Agora ele era do mundo. A mãe dele dizia como começou o processo de mudança: “Ele começou lendo um livro do “Vitu Hugu”, um cara Francês, depois ele tava com um tal de “Flôbert” e “Prost”, pensei até que fosse o inimigo do Airton Senna, mas era não. Ele disse que alguns desses homens viviam em lugares distantes, numa cidade-livro, que até já foi mostrada num filme; lá as pessoas eram livros. Eu achava estranho, já vi chupa cabra, mula sem cabeça e a loira do banheiro, mas pessoa-livro era novo, por um tempo tive medo desse menino, mas depois vi que era só maluquice, até hoje né? Aqui a gente cria filho pensando que vai ser estivador, vaqueiro ou se estudar um pouco pode ser até carteiro né? Ler os destinatário e remetentes...”.

Com alguns dias ele ganhou a chave da cidade, só não aceitou por que não tinha onde guardá-la. Sua irmã posou nua numa revista masculina e seu pai saiu em um jornal especializado em assuntos rurais, a cidade estava em crescimento, há quem diga que foi a época mais próspera que a cidade viveu, pessoas de todo o mundo, alguns malucos que achavam que ele era um profeta ou algo parecido. Saiu na Washington Post, The New York Times, Le Monde, Corriere de la sierra, Playboy, Brazil, Globo Rural entre outras... O mundo estava aos seus pés.

Quando se cansou daquilo tudo, decidiu descer das árvores e terminar de ler seu livro em seu quarto, como era o normal. As pessoas estranharam, acharam que ele não queria mais saber da cidade. Metade da cidade tentou ataca-lo, os vendedores protestaram, os mercadinhos não vendiam mais para sua família, logo começaram os ataques. Nada sobrou, alguns que o defendiam foram para um confronto direto, o prefeito interviu prendendo e torturando seus amigos. Sua família foi perseguida e morta, primos, tios, avós e qualquer pessoa que carregue seu sobrenome havia de morrer nos porões dessa cidade. Apenas ele conseguiu escapar, pegou alguns livros e voltou a praça e nunca mais colocou os pés no chão, andou a vida toda sobre as nuvens, como havia aprendido nos livros de Kafka, um Tcheco que não ia muito bem com seu pai.
Alexandre Grecco, 2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

SE TEU AMOR FOR COISA BARATA, FAÇA-ME UM FAVOR: PEGA UM CHINELO E MATA!

Quarto escuro


O sol esconde sua presença aos poucos, mas a noite parece escapar e transbordar no quadro do céu com uma imposição firme. As estrelas ainda não chegaram; o firmamento parece pintado com a tonalidade gritante de um avermelhado tosco. Da janela de meu quarto posso ver as idas e vindas na rua, os passantes, os carros. Divido o olhar entre a janela e um retrato. A janela enquadra a liberdade de minha visão. O retrato parece prender aos poucos a minha razão, ao mesmo tempo em que desanuvia meu corpo, torno-me escravo de uma idéia.
Na esquina em frente, que vejo de modo privilegiado, três mulheres altas trocam sorrisos e gargalhadas que resvalam em meu ânimo e não censuro um momento de riso. As mulheres são o melhor antídoto contra a tristeza. Por um instante tenho vontade de cantar, já não me serve a raiva ou a fossa.
Para distrair o destino e tentar enganar o tempo, imprimindo ritmo veloz a eles, só me resta desconstruir a fotografia. A garota presente na foto está mais presente ainda em meus sentidos, quero distanciar-me. Rasgar a foto ainda não consigo. Deixa-la escondida, uma tortura. A solução provisória, sem mais delongas: estudar o retrato.
Enquadramento, foco, iluminação, os diversos planos. Interessante transportar um objeto banhado pelo sentimentalismo para a analise científica e racional. O resultado não poderia ter sido pior. Me descobri um péssimo cientista e confirmei, diga-se, o velho ditado popular que diz que o amor é cego.
Melhor mesmo é olhar para as mulheres que conversam, e gritam, e dançam, e sussurram, e se divertem lá embaixo. Queria eu me divertir com elas, esquecer o retrato, descer e fugir para local escondido, muito bem acompanhado. O ônibus surge do fundo da rua, a esperança sobe os degraus e passa pela catraca junto com as três. Sobra-me um retrato, um quarto escuro, uma esquina mal iluminada e uma lembrança frágil do amor. A insônia barra a entrada do sono nesta estória.
Mauricio Mayckon

terça-feira, 12 de junho de 2007

Palavras e penas


- Qual o seu estilo? – perguntou um escritor ao outro.
- Não sei. Entendo pouco de definições, principalmente daquelas que se reportam a mim mesmo e de outras, mais irregulares ainda, sobre literatura.
- Não haveria vida ou festas se não tivéssemos arraigados na memória coletiva uma dose alta de certezas, afinal, o melhor Prozac para a alma é um pedaço açucarado de verdades prontas. Desculpe amigo, mas escritor sem estilo é rio sem água.
- Estilo tenho, só não o defino. Meus olhos são bons em entender os outros, mas me perco em esquetes amargos quando tento estudar meus próprios caminhos. E você, sábio escriba, que marca tem os teus versos?
- Escrevo o imaginário que cerca minha rua, a casa onde durmo, o corpo descomunal das mulatas que seduzo. Fecho os olhos e transcrevo as impressões que tenho das confusões diárias, o rosto pálido de Joana, os olhos insones que não dizem nada em frente ao espelho. Minhas palavras têm vida própria. Entre os grandes escritores, quais os estilos que mais lhe embriagam?
- Pergunta tinhosa. Devo admitir que me consumo em prazer com as sombras hilárias de Kafka, profeta entre profetas. Me arrepia a construção do tempo nas linhas de Proust. E não esqueço as viagens de Guimarães Rosa, viagens essas ao interior das geografias, tanto terrenas como humanas.
- Vejo que já leste grandes nomes. É incrível que não tenhas estilo próprio. Nunca pensaste no ofício da escrita?
- Esta conversa está nebulosa. Que tal falarmos sobre música?
- Só a literatura importa, e isto é verdade concreta.
- Há um pouco de verdade nesta sentença, mas não esqueça de um velho ditado: “As sentenças nunca se confundem com a verdade; ou são meia verdade, ou verdade e meia”.
- Este ditado não existe!
- Existe desde o momento em que eu o proferi. Mas ele só vai existir realmente quando o passar para o papel. A escrita fabrica tantas verdades quanto a realidade, se é que ambas não são a mesma coisa.
- Olha que morena rapaz. E parece que não ta acompanhada...
- É a Berenice, minha esposa.
- Opa... É... Vamos retornar ao nosso assunto anterior, tão cheio de vertentes e paradigmas, tão rico em hipóteses e hipotenusas... Que tal???
- ...


Mauricio Mayckon

segunda-feira, 11 de junho de 2007

MENINA LINDA NO KARAOKÊ




Mas tudo é cultura, adoro os jovens falando de cultura, se convencia o bêbado. Um bar típico, sempre os mesmos cantores, as mesmas músicas no karaokê, sempre o mesmo cheiro. Cheiro de cansaço e cheiro de alegria, cheiro de virilha. O viado sempre cantando e dançando, se espalhando na necessidade de se mostrar, como quem diz “quero a todos que tiverem o que uma mulher necessita”. Talvez o manco que a acompanhava tivesse algo para ele, ou ela, ou eles que habitam ela. A cerveja ao menos era gelada, os amigos falantes, talvez o álcool que os consumia deixava-os mais aguçados no pensamento. A única alegria contida era a dela, que talvez fosse medo, confusão ou receio. Ela que se postava ao meu lado como se não fosse minha. Talvez a distância do silêncio só fosse notada no tempo da mudança dos cantores. Menina linda eu te adoro...

A rua desabitada servia como espectadora dos desafinados trovadores. Talvez o dia tenha sido quente e as pessoas resolveram se esfriar na noite que também é quente. Ali estavam todos que habitam esse mundo de infinitas coisas. É sempre dos que fazem o que é feito, ou deveria ser. Senti-me pequeno diante dessas pessoas. Estavam ali se manifestando uns para os outros, como se fossem habitantes de tribos antigas, que dançavam para o sol, ou para a noite, colheitas e etc... Conseguiam conviver em completa harmonia, mesmo diante das diferenças; o gay, a lésbica, o machão, o novo, o velho... Contrastes que talvez nos restaurantes chiques não sejam permitidos. Os que mais vêem são os que mais se fecham. Como, em um mundo de tais diferenças não podemos entendê-las e respeita-las como a principio nos respeitam?

Se eu quiser falar com Deus... E ainda falam em Deus e coisas felizes. Não sabe o quanto são tristes, talvez saibam e não fazem questão de lembrar, fecham-se em suas possibilidades. Um professor de história faz suas performances entoando um blues aqui e ali. Talvez seus alunos nem saibam o quanto o professor tem de diferente, só devem conhecer sua cara de sala de aula, notas, provas, advertências, essas coisas que nos enfiam goela abaixo na escola. Queria ter tido um professor que cantava blues, maioria deles cantavam o mundo alegre, ou talvez ligavam tão pouco para nós que não valeria ensinar-nos que a vida é blues, triste e dotada dessas diferenças pouco respeitadas.

A lésbica cantou o quanto amava a sua amante: Amor da minha vida, daqui até a eternidade. Ela calada, como se fosse apenas olhos observava as sombras – depois de tanto dia, sobramos somente em sombras. Mas ela estava comigo, ela; a menina linda eu te adoro, como se tentasse descobrir-me em meu mundo. Lia-me enquanto misturava-me nas coxas de uma mulata; não deixe o samba morrer, e eu morria, morria e ela não me via, mal sabe que morro a cada dia, bar, rua, riso, lua, sol, apatia. O copo é ainda é pouco, e a noite termina no silêncio da menina linda, perdendo-me em suas confusões.

Alexandre Grecco, 2007

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Recomeços


Debaixo do céu sem limites, acuado pelas dobras das ruas, cheirando a esgoto e vestido com roupas coloridas e cintilantes, Ribeiro queria reaprender a viver. Nascido e criado numa pequena e escondida cidade, desde cedo se fez mestre na arte de mentir. A eloqüência que imprimia às frases, os verbos sempre bem conjugados com argúcia, a destreza em transformar informações simples em sentenças complicadas, quase eruditas, e a capacidade de omitir e falsear olhando nos olhos de seu interlocutor, o transformaram num mito.
Deixou a vila em que nasceu após conquistar o que podia e, confiante em seu talento único, seguiu o caminho da cidade grande, local constante em seus sonhos e delírios noturnos. Ao chegar ao destino certo, carregando na bagagem algum dinheiro e o dom que julgava ter, sentou num bar. Comemorar a vitória, agradecer a si mesmo, afinal, a quem mais devia gratidão? Pediu o cardápio. Não havia. Bebeu o primeiro e o segundo drinques. O terceiro e uma fila de outros. Dançou mambo, rebolou com carisma no ritmo da lambada, ao seu redor os objetos se moviam, olhos no meio da penumbra acompanhavam seus movimentos. Caiu.
Despertou sem sobressaltos sobre uma cama macia, muito bem colocada num quarto impregnado pela fragrância de hortelã, e ali ficou sem saber onde estava por alguns dias. Ninguém falava com ele. Ao final do pareceu ser uma semana, se contarmos o tempo real e o imaginário, recuperado dos terrores do fígado e sentindo-se outro, foi solto nas ruas. Descobriu que o poder de persuasão, sinônimo para mentira, que carregava há anos, não surtia efeito nos moradores da cidade grande. Eles, tão acostumados às mentiras dos outros, elevadíssimas no grau de criatividade, e nas próprias enganações, estavam imunes ao veneno fino e erudito da falsidade de nosso amigo interiorano. Por isso ele caminha pelas ruas com uma placa em que se pode ler: “Preciso reaprender a viver”.



Mauricio Mayckon...

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Quando as leituras

Lia você no que lia o passado. Interessante o quanto os sentidos se adequam as formas. Lia o mundo no que lia o outro e assim lia todos os sentidos queridos e ultrapassados. Lia também o quanto fosse necessário e morreria pelas pequenas coisas espalhadas nas grandes molduras que iam dos meus pés ao que não é mais sustentação. E você morria e lia e não se esquecia do que certamente lhe envolvia; um móvel lustre abajur souvenir abacaxis seda leda enseja as mais diversas formas de presenciar. Lia a explosão de mundo, lia a mais intríseca das literaturas, Isidore Ducassé lia em todas as linhas a mais antiga das novas paixões. Eu lia. Lia ou ainda leio, mas tão esquecida, tão tão tão tão assustada com minha agonia, tão marcada por antigas surdinas, lia a lia mais lida que poderia – se já não pudesse – ler o que minha poesia sem forma poderia e lia...

Alexandre Grecco, 2007

terça-feira, 29 de maio de 2007

Doces


O garoto não tem mais de 10 anos. Com roupas sujas e molhadas de suor, pele morena e rosto que desconhece a timidez ou vergonha de encarar estranhos de face tão séria, ele entra no ônibus e oferece em alto e bom som as mercadorias de sua lavra, doces e guloseimas de qualidade duvidosa, que são comprados pelos “clientes” não tanto pelo sabor, mas para a tentativa de salvação das próprias almas. A estratégia de marketing, que prima pela repetição de fórmulas batidas e carrega uma simplicidade sem limites, não vai além do pedido de ajuda, afinal, o menino não tem o que comer, nem onde brincar, quiçá estudar.
Sua voz é frágil e não viaja até os fundos do transporte, tem uma sonoridade repartida, aguda demais, revela um português errado, se é que tal coisa existe, e as palavras correm umas por cima das outras, misturando o que não se deve. O efeito do espetáculo demarca situações variadas entre os passageiros. Um rapaz de seus vinte e cinco anos estampa um sorriso frugal, devido ao ar cômico do garoto. Mas a maior parte dos presentes evita mirar os olhos do menino. Carregam em si certo incômodo inominável, espécie de culpa que só existe em tal momento.
Neste seu comércio esfacelado, sem ponto fixo, movente, cruzando a cada dia diversas pistas, novas paragens, desafiando outros rostos sérios, o garoto usa os mesmos esquemas. O que a vida ensina tem lugar imprescindível nos desassossegos do tempo, mas indispensável se faz, diria um professor, o conhecimento de outras áreas. Há uma fronteira de cacos de vidro entre o menino vendedor e um futuro generoso.
O garoto desfia comentários de agradecimento, expõe um sorriso de poucos dentes que impõe uma imagem ainda mais desoladora a sua pessoa, e vai embora, quem sabe procurar outro ônibus, se deparar sem saber com outro jovem metido a escritor e, como tudo na vida é um eterno retorno, ter-se transformado novamente em palavras. Sendo, antes de tudo, imortalizado.



Mauricio Mayckon

quarta-feira, 23 de maio de 2007

POEMA BÊBADO


Num rumo incerto e distante
Partido ao meio no caminho da serra
Esparramando em gritos agudos
Os cânticos proibidos da terra
Apresentam-se os vagabundos
Depois de tardia festa
Descabelam-se e sussurram
Gritam e desfalecem
Tomados no abismo da cana
Despojados de qualquer grana
Mas tomados de alegria verdadeira, dessas difíceis de encontrar
Animam a vida obscura
Dos plantadores, dos agricultores
Sem troca alguma de favores
Apenas por pena que tem
De tão velhos, tão próximos do cemitério.
Não terem juízo, menos ainda critério.



Mauricio Mayckon...

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Garotos e Marias


Todos os caminhos de minha adolescência levavam ao Beco Trovão, espelunca idílica e abrigo amargo dos desocupados e fugitivos da vida. O ambiente escuro e tomado por tipos estranhos flutuava numa fumaça suja. Não havia pessoas ali, apenas sombras doentes. O enxofre não fedia tanto quanto o bar, mas os seres presos naquele canto esquecido esqueciam do resto das coisas.
Passava horas e horas no Trovão, trocando idéias simples com amigos banais, beliscando petiscos esquisitos, escondendo o rosto do dia, fugindo das notas vermelhas, procurando um caminho errante. O Beco Trovão era apenas uma materialização do que Freud chamou de Id, ou melhor, um bálsamo do inconsciente. Lá se encontravam os tipos mais estranhos, provavelmente alguns fugitivos, entre eles diversos seres iguais entre si, mas difíceis de ver em plena rua. E as poucas mulheres que se aventuravam a passear pelas brechas das mesas, não eram nada além de prostitutas baratas. Prostitutas bem educadas com garotos como eu e meus colegas, mas que de respeito tinham apenas os nomes: Maria, Maria do Socorro, Maria Conceição, Marias.
Devo a esse antro de marginais bons aprendizados. Sei o quanto uma conversa de bar pode clarear o pensamento e derreter dúvidas. Admito tranqüilo que muitas coisas na vida são mais bem resolvidas com um tiquinho de gingado, algo que não se aprende na escola. “Mestres de bar, mestres de vida”, disse-me certa vez um ilustre professor de minha mãe.
Hoje o Beco Trovão reverbera como uma onda compassada em minha memória, e desisto de tentar recorrer aos detalhes mais ordinários do recinto. Entre doses proibidas de álcool e gordurosos tira-gostos de não-sem-o-quê, ainda me sobra a certeza de que a transgressão, a quebra de regras, o estar num local proibido, movimenta o âmago da juventude, ou da pós-juventude, até mesmo da velhice. Viva o Beco Trovão, lugar politicamente incorreto, berço da troça e da tragédia nossa de cada dia.



Mauricio Mayckon

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Sobre silogismos e alemães


O problema é o silogismo! Tudo que parece estar circulando nas cabecinhas pensantes da pós-modernidade (ou pós-pós-modernidade?) vem de um silogismo. Às vezes penso em Guy Debord assistindo de camarote esse a mundo de hoje, talvez ele gostasse de assistir os clipes da Britney Spears e, com certeza, ficaria acompanhando paredão por paredão o famoso alemão.

As pessoas parecem estar dia após dia na espera de um novo espetáculo, onde as imagens são formatadas para o deleite sádico de uma população tão carente que a única forma de prazer é se projetar em outras pessoas. Que nossa sociedade é realmente uma sociedade do espetáculo como previu o francês mal humorado em seu livro homônimo não é lá nenhuma novidade, mas o que gera essa sociedade de plástico é o que me impressiona; Esses dias meu irmão chegou a casa ouvindo um CD de uma banda pernambucana, aquelas bandas que os músicos geralmente são barbudos e metidos a políticos, falam de conceitos e dizem que tudo está uma verdadeira porcaria, como se tivessem encontrado o segredo do abismo ou a genealogia da galinha (quem vem primeiro o ovo ou a galinha?). Ele vinha cantando os acordes desacordados e dizendo que os caras são o que há na música brasileira. Mostrei a ele o novo CD do Calypso, ele riu de mim, juro que não entendi o motivo.

Segundo sua grande experiência musical, quem gosta de Mombojó não gosta de Calypso, achei muito sem graça seu solilóquio, evocando a politização alienada da banda pernambucana. Isso me lembra a situação do país, o espetáculo gera oposições e você tem de estar inserido em uma das posições que geralmente são bipolares; vejamos a política, Lula e Alckmin, seres opostos por natureza, o rico mauricinho e o populista nato, nascido das camadas pobres da população. Porque não podemos ter o meio termo? Sou a favor do meio termo, todo radicalismo me dá medo, veja os alemães, os ruandeses, russos, enfim...

No Brasil o último silogismo veio do Papa alemão (esses alemães tomam conta de tudo), ele disse, de maneira subliminar, que é necessário que os católicos não pratiquem outras religiões; “Não queremos quantidade e sim qualidade”, se ele soubesse o quanto isso vai adiantar. Minha vizinha pediu a Ogun que o protegesse em sua volta, afinal, o espaço aéreo anda muito confuso, assim como a cabeça dos católicos, entre eles meu irmão.

Alexandre Grecco, 2007

segunda-feira, 14 de maio de 2007

O sorriso da Moça


Os olhos da Moça não enganam. Eles, tão surreais que assustam os mais crédulos, dão a ela ar místico, que encanta os desavisados e produz inveja entre as menos belas. O sorriso, cantado e elogiado por diversos poetas da terra, dispensa exaltações ou palavras variadas, pois basta ver os marmanjos mais cruéis e metidos suspirando feito donzelas apaixonadas pelos cantos floridos da praça para entender o encantamento.
O namorado é quem mais sofre. Não se sabe de traições nem de fofocas. Mas a beleza de tirar o fôlego e o corpo faceiro, que não agüenta a tortura das roupas compridas, destrói qualquer frase do tipo: “Você é meu amigo, camarada. Tua mulher pra mim é...”. Não e não. Perto dela, ele é sem brilho. Desfeito e ridículo, até mesmo as garotas o ignoram. Ela é bonita demais. Ele conseguiu a proeza de namorar a mais desejada, o que pareceu sorte no começo tomou ares de azar; está cansado e com medo de ser traído.
O restante dos homens, urubus na perfeita acepção da palavra, gostam dos dois, dele e dela. Dele gostam do rosto de bobo, da insegurança, do fusca velho. Dela gostam das pernas firmes, do dorso frio, da boca paradisíaca. Ele odeia todos os homens. Ela odeia os homens que não a olham com vontade. O casal tem futuro certo. Vão se casar.
Ela mora numa casa de varanda em frente a varanda de minha casa. Meu irmão mais novo comprou um binóculo e ontem descobri o motivo. Passa horas observando a Moça. Por isso ele anda com um sorriso tão evidente.
Mauricio Mayckon

domingo, 13 de maio de 2007

Rosa, uma Fernanda que não ama...




Rosa Fernanda. Nascida no bairro Pirambu, em Fortaleza, no dia 21 de agosto de 1961.Vendedora de tapioca, bombom, cafezinho - à 50 centavos -, pão carioquinha na chapa e suco de acerola, tem uma renda extra, das roupas que suas filhas lavam pra fora. São sete filhas; Rosymari, Robervéria, Rosineide, Rosicléa, Rosenardia, Roselene, Rosbife - que só veio saber do significado do seu nome quando ingressou na carreira de garçonete na budega do Rivaldo-. Rosa Fernanda já é avó, têm ao todo, em sua casa, sete filhas e nove netos. Dois são homossexuais, conhecidos na redondeza como “queijinho” e “qualhada”, um é evangélico e toca flauta doce nos cultos, a Rildina é prostituta, mas a mãe, a Rosenardia não sabe. Por fim vêm os mais novos, que no máximo exercem a função de hospedeiros de bactérias entre outras larvas...Rosa Fernanda jura que existe Deus. Talvez pelo fato de Jesus, seu ex-marido, ter contraído herpes de sua ex-vizinha, Geyza.Sem titubear, Rosa acorda todos os dias às cinco da manhã, invariavelmente bêbada. Passa suas noites no Bar do Índio, reduto da boemia da praia do futuro. No bar do índio, o Pau do Índio é por conta da casa. Rosa Fernanda se embriaga com o Pau do Índio. Ela diz que já gostou de alguém – que não foi Jesus – de verdade. Seu grande amor morreu na pesca, foi comido por um tubarão. Segundo os pescadores bêbados da região, entre uma partida de gamão e uma dose de pinga, Eudes Junior – amor de Rosa Fernanda – quis se jogar no mar e nadar até onde seus braços falharem, e assim o fez. No outro dia, acharam Eudes na Praia de Iracema, sem as pernas e com as víceras expostas ao sol. Um cachorro lambia seu intestino. Rosa Fernanda nunca mais foi à mesma, desse dia em diante nunca mais amou ninguém, nunca mais comeu buchada.


Alexandre Grecco, 2007

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Um velho amigo





Encontro desfalecido na rua um velho amigo. Deitado no chão lamacento, com as mãos mais sujas que o chão, a boca sem dentes ou saudades, o olhar calado. Ele não lembrou de mim, acho, pois quando estendi a mão em forma de cumprimento amigo, pulou assustado para trás e correu. Agora, depois de refletir o caso, não sei se realmente não me reconheceu ou se pensou ser eu um fantasma aziago de seu passado.
Entre as duas opções, sinceramente não sei a que prefiro, ou melhor, a que acho menos horrível. Se ele correu por medo de um desconhecido, por si só é significante. A sociedade humana, racional ao extremo que esquece o mistério da vida, não se admira com o cândido movimento dos pássaros ou com a cálida e vibrante respiração das flores, se vê diante de um espelho em que intimamente todos são diferentes, mas expressam sempre as mesmas opiniões. O homem, mendigo, correu por terror de que algo fosse feito a ele.
Nada é certo, porém, nesta pequena reflexão. Se o susto e a fuga do pobre homem foram devido a uma lembrança, mesmo frágil, foi o suficiente para ele achar que era melhor viver no pântano das ruas, cercado por todos os tipos de pessoas e sofrimentos, do que voltar a jaula de seu passado. Pensando bem, acho que eu faria o mesmo. Quem não desconfiaria, nos dias de hoje, de um homem que estende as mãos a um mendigo. (Infelizmente).


Por Mauricio Mayckon...



terça-feira, 8 de maio de 2007

Da Janela...


Queria lhe dizer algo que não lembro. Agora parece que me sufoca a saudade de uma lembrança, talvez o simples fato de haver uma lembrança remete a quem a sente uma saudade desmesurada. Não parta sem antes me ouvir, nunca me ouvem. Queria, de certo, dizer-lhe que nasceste de mim, como um acalanto e de repente se tornou uma tempestade, ou algo que chora. Há tanto a ser dito, e talvez haja algo em sua mala, tem certeza que levaste tudo? Acho que sim, levaste mais do que lhe cabe. Até aquela minha calma convulsa, o meu jeito de ser sem jeito, as bebidas escondidas e as farras desmedidas. Leva minha posse física dos braços. Não preciso do que me segura em terra, antes houvesse asas, talvez voaria e pouco me preocuparia a certeza das pernas. E talvez voasse longe, como aqueles pássaros que migram do sul, como se fossem donos do ar; não se dão ao trabalho de olhar para baixo, olhar embaixo, olhar típico do ser humano, que não sabe ser, se não for, humano. Vai, sei que andarás como quem plana. E se aproveite do que me roubaste de maneira premeditada: as minhas damas nuas, expostas aos olhos de quem apenas as vêem despidas da proteção do mundo, eu não, não as via nuas, apenas despojadas em carne, em alma, sublimes e cruas, as minhas damas das ruas.
E de súbito, lhe digo que vá, aquilo que sempre quis lhe dizer é indizível. Sabe aquilo que te possui como quem quer saltar inerte? Talvez uma frase – ou mesmo palavra – que não existe nos aurélios, apenas nos espaços que se elevam em si mesmos. Daqui do meu quarto te expulso poema. Dizem que voas, dizem que tu planas como que conduzido pelos movimentos de umas das virgens muçulmanas, umas das donzelas desprotegidas que vagam nas páginas das mil e uma noites. Dizem que tens a leveza de uma pluma, pois ordeno que vá como um pássaro, um pássaro como Valéry, direto, constante e leve. Leve-me um pouco de mim para o alto, para o imenso, para o imensamente alto.


Alexandre Grecco, 2007