quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Uma saga na aldeia pensante



Na esquerda, uma sorridente toupeira se alegra com sua capacidade textual, ela consegue a estrutura, a verve, a sensação de dever comprido. Já na direita, uma pesada anta carrega nos bolsos da sua jaqueta sua libertação pro mundo: um celular. De fronte ao interlocutor que vos escreve, a besta quadrada se ocupa de sua posição geométrica. Aliada a ela o condor desesperado e gordo, espia por trás dos seus grandes óculos o movimento dessa fauna pós-moderna. Sei, talvez tenha faltado o cão, esse animal dócil e demasiado fiel, ele anda hoje sereno e pensativo, se importando, provavelmente, com a condição dos outros da aldeia.


Continua...


Alexandre Grecco, 2007, em um zoológico qualquer.




segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As sombras


A noite foi longa. Mayara caminha sem pressa sobre a calçada. Os saltos incomodam e o sol aos poucos preenche o esconderijo das sombras. Alguns passantes olham Mayara com olhos de padre. Ela é grande, incomum. Não há outra definição. Parceiras da noite trocam acenos e sorrisos com ela, perguntam se a noite foi boa. A noite não é uma criança, não há bondade alguma nela.

Mayara sacoleja o pandeiro enquanto anda. Os moradores de rua conhecem seu caminho, suas estórias, as brigas com navalha. Ela tem uma cicatriz no abdômen, já levou bala na perna esquerda, e apanhou muito pela vida afora. Gosta de Blues, Cross Road, mas o ritmo de sua existência é o brega dos anos 60. Mayara se fez mito nas noites escondidas.

Um velho ameaça correr atrás dela, o sol desfaz a aura de mistério e poder que só a lua permite. O corpo dói, consumido pelas exaltações furiosas das células, tem cheiro de sangue. A carne apodrece aos poucos, pensa ela de vez em quando. Olha a cidade, sabe que todos estão a olhá-la. Tem o forte desejo de beber vodca, nada melhor pela manhã. Numa esquina imunda compra flores, prefere flores a animais; prefere flores a pessoas. Finalmente chega ao seu prédio, foge da chuva que começa a cair.

- Oi, seu Luiz. – diz Mayara.
- Oi. – diz o porteiro do prédio, com a brasa viva da curiosidade nos olhos.

Ela entra no apartamento. Se desfaz dos saltos, arranca com fúria a peruca. Tira os colares, os brincos, a roupa toda. Banha-se, esfregando com garra o rosto para se livrar do brilho e da maquiagem pesada. Olha a cidade cambiante sendo apagada pela chuva. Tem impulsos niilistas. Veste o terno, a gravata, as calças de homem sério. Desce os degraus, odeia o elevador.

- Sua irmã chegou neste instante. Rapaz tira tua irmã da vida fácil. – disse o porteiro com pesar na voz.

- Eu tento seu Luiz, eu tento.




Mauricio Mayckon

domingo, 12 de agosto de 2007

Partidas!

A mala pronta, os sorrisos sem graça, os papos paralelos, as esperanças de retorno. A janela fria mostra os prédios, as pessoas alheias; tudo tempera as despedidas. Voltemos à verdade, o tempo dos suspensos já está por passar. A cidade quente se tornou fria durante esses 15 dias, e agora pertence apenas ao retrovisor do carro. Os túneis, o centro, a linha amarela, o maracanã, o que fica é doce, sabor de chá mate e bolinho de bacalhau. Nos copos de chope, ficam o DNA de esperança, de retorno, de quem sabe o mundo sorrir e nos fazer mais fáceis. Hoje fico com poucas palavras, afinal, tenho de terminar a arrumar as malas, não consigo achar minhas meias, acho que ficaram perdidas pelo quarto...
Alexandre Grecco, 2007, de retorno pro irremediável...

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Nimbus


Há alguns anos o tempo mudou. O tempo do homem, o tempo dos segundos, não tanto o tempo da natureza, pois este continua abrasivo. As coisas, tanto as palpáveis como as imaginárias, se agregam da passagem dos dias e anos e isso resulta no fim de alguns mistérios. O avô de Marconi é um homem sábio, enfrentou grandes baques na prolongada vida que não o quer deixar. Sentados em cadeiras duras, num semicírculo, todos ouvimos as histórias do velho que trabalhou somente em um lugar, sendo gerente de um banco, mas bem que poderia ser artista.

Seus olhos são unidos por sobrancelhas grossas e nevadas, tem as pupilas grandes e redondas e a voz de coronel. Não sabemos o nome dele. Ele é apenas o avô de Marconi. Beirando os noventa anos, o velho quer ficar sempre entre os jovens, diz com uma carga de crenças na voz: “A juventude espanta a mesmice da velhice solitária de um viúvo pensativo”. Suas estórias mesclam a antiga vida no interior do estado, onde os vaqueiros, as lendas e as mulheres de corpo delgado que se banham nuas nos rios da região se encontram como em um sonho cálido.

Ele me lembra, pelo jeito de poeta e as idéias distantes, alguns filósofos e professores geniais. Esta noite o avô de Marconi nos contou sobre a guerra dos mendigos, acontecida quando ele era criança, que dizimou os vários mendigos da pequena cidade, tudo por que eles queriam poder entrar na igreja e não podiam. Nos despedimos felizes e irrequietos, pois dali a uma semana haveria outra seção, e seria justamente a estória do Lobilosomem que o velho viu quando jovem e que, segundo o próprio, lhe dera sorte para o resto da vida.

Não houve outra seção. Quando amanheceu, não havia mais o avô de Marconi. Fora embora durante a noite, deixando apenas o corpo imóvel e frio de um velhinho fraco. Encontraram em sua mão um pedaço amassado de papel, onde constava a seguinte e misteriosa frase: “A morte é somente um estratagema da vida, nada mais’. No enterro apareceram alguns vaqueiros e mulheres de corpo delgado, foi inevitável sorrir ao imaginar uma ponta de realidade em estórias tão despretenciosas.



Mauricio Mayckon

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

hoje; um lugar no ontem

Acordei um pouco mais pouco que ontem. Hoje é quinta e o filho da puta do vizinho inventa de ouvir música alta, sempre os mesmos sertanejos contando as mesmas mazelas. Coloco um Clapton pra limpar o ambiente blues before sunrise. Dou uma mijada, olho pro pau, não sei o porque do sangue, escovo os dentes, olho para o espelho e não acredito nas olheiras, três dias sem dormir direito. Não tem café, não tem pão, não tem uma porra de uma água na geladeira. Desço pra ver se encontro algo pra comer, no bar vizinho tem um queijo quente que não sei de onde vem e talvez pouco me importe a procedência, as coisas simplesmente são. Ter que recomeçar um dia é como ter que se desprender do sono, dos bocejos blues leave me alone. Vou a casa dela, como sempre faço, ia contar-lhe do sangue, mas a gente transa, responsabilidade nunca foi o meu forte e, outra; ela quer uma tal de união direta, não sei bem o que é isso, talvez tenha lido em algum auto-ajuda que ela empilha no trabalho. Me conta os problemas, os gastos, “vem pra cá amor!”, pro inferno, se soubesse como gosto de acordar. Eu passaria a eternidade dormindo, mas sou covarde demais pra morrer, talvez me matasse depois de sair da casa dela, mas vou ler revistinhas na banca, talvez anime meu dia goin’ away baby.

O centro da cidade é uma merda, muita gente, gente que nem sabe pra onde vai, de onde vem, o gado pasta. Eu compro uns livros, sobrou um trocado da minha rescisão, como não compro nada pra casa mesmo, levo um kerouac, falo assim em minúsculo por que não sou muito fã dele não, talvez tenha influenciado demais um monte de cabeças de vento, ninguém entendeu on the road e poucos leram vagabundos iluminados... Levei o livro dos sonhos, mas uma besteira dele, acabei lendo todo enquanto pegava o trem pra algum lugar mais lugar que ontem. Desci na esquina da casa dela, de onde tinha saído há poucas horas, talvez todos os caminhos me levem a ela groaning the blues. Dei o livro a ela, talvez sirva mais naquela cabecinha pós-pós-moderna. Voltei pra casa, talvez assim acertasse o caminho, comprei uma vodka, comprei alguma coisa do que resta, ouvi Clapton, motherless child, dormi pra esperar o amanhã e quem sabe acordar um pouco menos que hoje...
Alexandre Grecco, 2007