sexta-feira, 29 de junho de 2007

Prato Feito de Domingo


Domingo era sempre a mesma coisa; salame italiano, cerveja preta e corrida de fórmula um. Esperava sempre que algum brasileiro superasse as expectativas da sua semana enfadonha. Depois de mais um dos fracassos, pedia a um dos meninos que buscasse mais cerveja e mantivesse o sorriso no rosto, talvez não existissem famílias assim, as crianças tem fome e desperdiçar comida e carinho é pecado diz o padre nos domingos que ela sempre acompanhava, era a oportunidade dela se ver livre e poder contar ao padre o caso que mantinha com o amigo do marido que assiste fórmula um. O padre a recriminava, eram vinte “ave marias” e dez “pai nossos” e mais um menino no seu quarto, como é de costume dos padres e dos meninos. Almoço simples, feijão, mentira, arroz e uma carne de segunda, tudo era assim de segunda, como essa carne, como a carne da filha do açougueiro, que as vezes dava de cortesia carne de segunda “seu filho é muito respeitoso com minha filha seu Agenor” e Clarisse fugia das carnes e buscava seus amigos, brincava rodava e dava as coxas para que todos gozassem, mas só nas coxas, como um poema sujo. E ele agradecia e dizia “foi bem criado seu Carlos, muito obrigado pela carne, é pra amanhã depois da corrida”. Goiabada cascão, leite moça e o domingo se arrasta. Faustão e festa na praça, as mesmas pessoas e as mesmas cervejas quentes e espetinhos de gato. Depois a embriagez e mais algumas mentiras; o pau não sobe, a dor não passa e mais uma vez eu mijo sangue. Tomo um cachorro em pílula que me come por dentro. Às vezes rola até um baseado mais minha mãe e o amigo e a corrida e as coxas dela – tão quentes. O dia passa e mais uma vez segunda-feira nasce, fria, como nascem friamente cedo as segundas-feiras...


Alexandre Grecco, 2007

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Antes e depois do sol


De todas as imagens que surgem de não sei onde, nenhuma explica melhor esta estória que o gado esquelético e bambo, procurando água entre as depressões do terreno seco. Caetano Dodô acorda aos poucos, antes do nascer do sol e do cantar dos galos, na verdade os galos estão sem força e o canto que tentam soltar não acorda nem os bichos rasteiros. Caetano tem mulher cansada, sete filhos mal desenvolvidos, três bois doentes de fome, uma vaca que não dá leite e uma casa de barro e taquara no meio do sertão, sem rastros de humanidade ao redor.

A pele tostada pelo sol daquele fim de mundo tornou-se eternamente dura, rachada. A família inteira tinha o corpo mesquinho, fraco e os ossos bicudos apresentavam suas formas sob o couro curtido. Na casa não havia eletricidade nem boa comida. Mas o que mais aperreava a noção dura de realidade da senhora Cândida era a inexistência de uma espécie de vidro brilhoso, que vira a muitos anos na cidade, que refletia as pessoas e as coisas. Ela não sabia o nome de tal prodigiosa invenção: espelho.

Depois de Caetano, um por um dos habitantes da casa foram despertando. O dia reservava muito trabalho, esforço em dobro até, pois é data especial, a mais importante do ano, talvez a única que conheciam: Festas Juninas. Das regiões distantes viriam os amigos mais próximos para dançar e beber, talvez comer um pouco, se tivesse comida. Enquanto Caetano, com remorso e pena, sacrificaria um de seus bois, os meninos colheriam o pouco milho para a senhora Cândida, preocupada com sua aparência, pedindo ao Deus dos agricultores um vidro refletor mágico, preparar as delícias típicas.

Chegaram os convidados. Muitos e muitos. A mesa apresentava-se farta aos olhos incrédulos dos matutos. Bebida de sobra. Música boa. Uma fogueira gigante, das maiores já produzidas. As moças com os vestidos juninos, os cabelos em tranças, os rostos pintados, sedução demais para os pobres homens, que não tinham felicidade senão a de estar vivos e possuir mulheres. No dia seguinte, atordoados pela festança, fatigados pela ausência do mundo, ninguém lembrou de ir à missa. O padre não transmitiu sua ira aos pobres sertanejos. Ele estava ocupado, esquentando seu corpo frio com a brasa viva que era a pele mulata de Antonieta, debaixo das bandeirinhas coloridas de São João.



Mauricio Mayckon...

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Errante


Amar sem deixar de lado
Deixar amar o errado
Errar o erro do outro
Num espasmo apaixonado

Gritar balidos de raiva
Carregando uma flor lívida
Dançando bêbado numa esquina esquiva
À procura da amada

Que não está ali
Do outro lado da rua
Mas presente aqui

No coração bruto e selvagem
Que resiste incólume a toda tribulação
Mas desfalece em prantos nos descaminhos da paixão.



Mauricio Mayckon...

quarta-feira, 20 de junho de 2007

De cima do céu


Quando ele viu estava inerte, parecia que o tempo havia trocado de lugar com o espaço. Sentiu-se como um astronauta, as pessoas, elas estavam sob ele, perplexas, como a contemplar algo surreal, como constatarem o quanto era diferente. Seus pais estavam em casa quando souberam da notícia e correram para praça, os amigos próximos, quando chegaram ao local, começaram a bater palmas, como a compartilhar a alegria dele, um grupo de senhoras achou estranho e começaram a rezar, alguns poucos foram buscar seus instrumentos e fizeram uma banda para acompanha-lo. A praça agora vivia lotada, imprensa do mundo todo veio vê-lo; Alemanha, Argentina, Inglaterra, Espanha, Portugal, Itália, Estado Unidos, até um grupo de poloneses veio cobrir o feito...

Logo foi feito um documentário para o cinema, poucos lembraram que não havia cinema na cidade, mas que importa? Agora ele era do mundo. A mãe dele dizia como começou o processo de mudança: “Ele começou lendo um livro do “Vitu Hugu”, um cara Francês, depois ele tava com um tal de “Flôbert” e “Prost”, pensei até que fosse o inimigo do Airton Senna, mas era não. Ele disse que alguns desses homens viviam em lugares distantes, numa cidade-livro, que até já foi mostrada num filme; lá as pessoas eram livros. Eu achava estranho, já vi chupa cabra, mula sem cabeça e a loira do banheiro, mas pessoa-livro era novo, por um tempo tive medo desse menino, mas depois vi que era só maluquice, até hoje né? Aqui a gente cria filho pensando que vai ser estivador, vaqueiro ou se estudar um pouco pode ser até carteiro né? Ler os destinatário e remetentes...”.

Com alguns dias ele ganhou a chave da cidade, só não aceitou por que não tinha onde guardá-la. Sua irmã posou nua numa revista masculina e seu pai saiu em um jornal especializado em assuntos rurais, a cidade estava em crescimento, há quem diga que foi a época mais próspera que a cidade viveu, pessoas de todo o mundo, alguns malucos que achavam que ele era um profeta ou algo parecido. Saiu na Washington Post, The New York Times, Le Monde, Corriere de la sierra, Playboy, Brazil, Globo Rural entre outras... O mundo estava aos seus pés.

Quando se cansou daquilo tudo, decidiu descer das árvores e terminar de ler seu livro em seu quarto, como era o normal. As pessoas estranharam, acharam que ele não queria mais saber da cidade. Metade da cidade tentou ataca-lo, os vendedores protestaram, os mercadinhos não vendiam mais para sua família, logo começaram os ataques. Nada sobrou, alguns que o defendiam foram para um confronto direto, o prefeito interviu prendendo e torturando seus amigos. Sua família foi perseguida e morta, primos, tios, avós e qualquer pessoa que carregue seu sobrenome havia de morrer nos porões dessa cidade. Apenas ele conseguiu escapar, pegou alguns livros e voltou a praça e nunca mais colocou os pés no chão, andou a vida toda sobre as nuvens, como havia aprendido nos livros de Kafka, um Tcheco que não ia muito bem com seu pai.
Alexandre Grecco, 2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

SE TEU AMOR FOR COISA BARATA, FAÇA-ME UM FAVOR: PEGA UM CHINELO E MATA!

Quarto escuro


O sol esconde sua presença aos poucos, mas a noite parece escapar e transbordar no quadro do céu com uma imposição firme. As estrelas ainda não chegaram; o firmamento parece pintado com a tonalidade gritante de um avermelhado tosco. Da janela de meu quarto posso ver as idas e vindas na rua, os passantes, os carros. Divido o olhar entre a janela e um retrato. A janela enquadra a liberdade de minha visão. O retrato parece prender aos poucos a minha razão, ao mesmo tempo em que desanuvia meu corpo, torno-me escravo de uma idéia.
Na esquina em frente, que vejo de modo privilegiado, três mulheres altas trocam sorrisos e gargalhadas que resvalam em meu ânimo e não censuro um momento de riso. As mulheres são o melhor antídoto contra a tristeza. Por um instante tenho vontade de cantar, já não me serve a raiva ou a fossa.
Para distrair o destino e tentar enganar o tempo, imprimindo ritmo veloz a eles, só me resta desconstruir a fotografia. A garota presente na foto está mais presente ainda em meus sentidos, quero distanciar-me. Rasgar a foto ainda não consigo. Deixa-la escondida, uma tortura. A solução provisória, sem mais delongas: estudar o retrato.
Enquadramento, foco, iluminação, os diversos planos. Interessante transportar um objeto banhado pelo sentimentalismo para a analise científica e racional. O resultado não poderia ter sido pior. Me descobri um péssimo cientista e confirmei, diga-se, o velho ditado popular que diz que o amor é cego.
Melhor mesmo é olhar para as mulheres que conversam, e gritam, e dançam, e sussurram, e se divertem lá embaixo. Queria eu me divertir com elas, esquecer o retrato, descer e fugir para local escondido, muito bem acompanhado. O ônibus surge do fundo da rua, a esperança sobe os degraus e passa pela catraca junto com as três. Sobra-me um retrato, um quarto escuro, uma esquina mal iluminada e uma lembrança frágil do amor. A insônia barra a entrada do sono nesta estória.
Mauricio Mayckon

terça-feira, 12 de junho de 2007

Palavras e penas


- Qual o seu estilo? – perguntou um escritor ao outro.
- Não sei. Entendo pouco de definições, principalmente daquelas que se reportam a mim mesmo e de outras, mais irregulares ainda, sobre literatura.
- Não haveria vida ou festas se não tivéssemos arraigados na memória coletiva uma dose alta de certezas, afinal, o melhor Prozac para a alma é um pedaço açucarado de verdades prontas. Desculpe amigo, mas escritor sem estilo é rio sem água.
- Estilo tenho, só não o defino. Meus olhos são bons em entender os outros, mas me perco em esquetes amargos quando tento estudar meus próprios caminhos. E você, sábio escriba, que marca tem os teus versos?
- Escrevo o imaginário que cerca minha rua, a casa onde durmo, o corpo descomunal das mulatas que seduzo. Fecho os olhos e transcrevo as impressões que tenho das confusões diárias, o rosto pálido de Joana, os olhos insones que não dizem nada em frente ao espelho. Minhas palavras têm vida própria. Entre os grandes escritores, quais os estilos que mais lhe embriagam?
- Pergunta tinhosa. Devo admitir que me consumo em prazer com as sombras hilárias de Kafka, profeta entre profetas. Me arrepia a construção do tempo nas linhas de Proust. E não esqueço as viagens de Guimarães Rosa, viagens essas ao interior das geografias, tanto terrenas como humanas.
- Vejo que já leste grandes nomes. É incrível que não tenhas estilo próprio. Nunca pensaste no ofício da escrita?
- Esta conversa está nebulosa. Que tal falarmos sobre música?
- Só a literatura importa, e isto é verdade concreta.
- Há um pouco de verdade nesta sentença, mas não esqueça de um velho ditado: “As sentenças nunca se confundem com a verdade; ou são meia verdade, ou verdade e meia”.
- Este ditado não existe!
- Existe desde o momento em que eu o proferi. Mas ele só vai existir realmente quando o passar para o papel. A escrita fabrica tantas verdades quanto a realidade, se é que ambas não são a mesma coisa.
- Olha que morena rapaz. E parece que não ta acompanhada...
- É a Berenice, minha esposa.
- Opa... É... Vamos retornar ao nosso assunto anterior, tão cheio de vertentes e paradigmas, tão rico em hipóteses e hipotenusas... Que tal???
- ...


Mauricio Mayckon

segunda-feira, 11 de junho de 2007

MENINA LINDA NO KARAOKÊ




Mas tudo é cultura, adoro os jovens falando de cultura, se convencia o bêbado. Um bar típico, sempre os mesmos cantores, as mesmas músicas no karaokê, sempre o mesmo cheiro. Cheiro de cansaço e cheiro de alegria, cheiro de virilha. O viado sempre cantando e dançando, se espalhando na necessidade de se mostrar, como quem diz “quero a todos que tiverem o que uma mulher necessita”. Talvez o manco que a acompanhava tivesse algo para ele, ou ela, ou eles que habitam ela. A cerveja ao menos era gelada, os amigos falantes, talvez o álcool que os consumia deixava-os mais aguçados no pensamento. A única alegria contida era a dela, que talvez fosse medo, confusão ou receio. Ela que se postava ao meu lado como se não fosse minha. Talvez a distância do silêncio só fosse notada no tempo da mudança dos cantores. Menina linda eu te adoro...

A rua desabitada servia como espectadora dos desafinados trovadores. Talvez o dia tenha sido quente e as pessoas resolveram se esfriar na noite que também é quente. Ali estavam todos que habitam esse mundo de infinitas coisas. É sempre dos que fazem o que é feito, ou deveria ser. Senti-me pequeno diante dessas pessoas. Estavam ali se manifestando uns para os outros, como se fossem habitantes de tribos antigas, que dançavam para o sol, ou para a noite, colheitas e etc... Conseguiam conviver em completa harmonia, mesmo diante das diferenças; o gay, a lésbica, o machão, o novo, o velho... Contrastes que talvez nos restaurantes chiques não sejam permitidos. Os que mais vêem são os que mais se fecham. Como, em um mundo de tais diferenças não podemos entendê-las e respeita-las como a principio nos respeitam?

Se eu quiser falar com Deus... E ainda falam em Deus e coisas felizes. Não sabe o quanto são tristes, talvez saibam e não fazem questão de lembrar, fecham-se em suas possibilidades. Um professor de história faz suas performances entoando um blues aqui e ali. Talvez seus alunos nem saibam o quanto o professor tem de diferente, só devem conhecer sua cara de sala de aula, notas, provas, advertências, essas coisas que nos enfiam goela abaixo na escola. Queria ter tido um professor que cantava blues, maioria deles cantavam o mundo alegre, ou talvez ligavam tão pouco para nós que não valeria ensinar-nos que a vida é blues, triste e dotada dessas diferenças pouco respeitadas.

A lésbica cantou o quanto amava a sua amante: Amor da minha vida, daqui até a eternidade. Ela calada, como se fosse apenas olhos observava as sombras – depois de tanto dia, sobramos somente em sombras. Mas ela estava comigo, ela; a menina linda eu te adoro, como se tentasse descobrir-me em meu mundo. Lia-me enquanto misturava-me nas coxas de uma mulata; não deixe o samba morrer, e eu morria, morria e ela não me via, mal sabe que morro a cada dia, bar, rua, riso, lua, sol, apatia. O copo é ainda é pouco, e a noite termina no silêncio da menina linda, perdendo-me em suas confusões.

Alexandre Grecco, 2007

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Recomeços


Debaixo do céu sem limites, acuado pelas dobras das ruas, cheirando a esgoto e vestido com roupas coloridas e cintilantes, Ribeiro queria reaprender a viver. Nascido e criado numa pequena e escondida cidade, desde cedo se fez mestre na arte de mentir. A eloqüência que imprimia às frases, os verbos sempre bem conjugados com argúcia, a destreza em transformar informações simples em sentenças complicadas, quase eruditas, e a capacidade de omitir e falsear olhando nos olhos de seu interlocutor, o transformaram num mito.
Deixou a vila em que nasceu após conquistar o que podia e, confiante em seu talento único, seguiu o caminho da cidade grande, local constante em seus sonhos e delírios noturnos. Ao chegar ao destino certo, carregando na bagagem algum dinheiro e o dom que julgava ter, sentou num bar. Comemorar a vitória, agradecer a si mesmo, afinal, a quem mais devia gratidão? Pediu o cardápio. Não havia. Bebeu o primeiro e o segundo drinques. O terceiro e uma fila de outros. Dançou mambo, rebolou com carisma no ritmo da lambada, ao seu redor os objetos se moviam, olhos no meio da penumbra acompanhavam seus movimentos. Caiu.
Despertou sem sobressaltos sobre uma cama macia, muito bem colocada num quarto impregnado pela fragrância de hortelã, e ali ficou sem saber onde estava por alguns dias. Ninguém falava com ele. Ao final do pareceu ser uma semana, se contarmos o tempo real e o imaginário, recuperado dos terrores do fígado e sentindo-se outro, foi solto nas ruas. Descobriu que o poder de persuasão, sinônimo para mentira, que carregava há anos, não surtia efeito nos moradores da cidade grande. Eles, tão acostumados às mentiras dos outros, elevadíssimas no grau de criatividade, e nas próprias enganações, estavam imunes ao veneno fino e erudito da falsidade de nosso amigo interiorano. Por isso ele caminha pelas ruas com uma placa em que se pode ler: “Preciso reaprender a viver”.



Mauricio Mayckon...

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Quando as leituras

Lia você no que lia o passado. Interessante o quanto os sentidos se adequam as formas. Lia o mundo no que lia o outro e assim lia todos os sentidos queridos e ultrapassados. Lia também o quanto fosse necessário e morreria pelas pequenas coisas espalhadas nas grandes molduras que iam dos meus pés ao que não é mais sustentação. E você morria e lia e não se esquecia do que certamente lhe envolvia; um móvel lustre abajur souvenir abacaxis seda leda enseja as mais diversas formas de presenciar. Lia a explosão de mundo, lia a mais intríseca das literaturas, Isidore Ducassé lia em todas as linhas a mais antiga das novas paixões. Eu lia. Lia ou ainda leio, mas tão esquecida, tão tão tão tão assustada com minha agonia, tão marcada por antigas surdinas, lia a lia mais lida que poderia – se já não pudesse – ler o que minha poesia sem forma poderia e lia...

Alexandre Grecco, 2007