
Lilá não estranhava meus atrasos para as reuniões do grupo, ela sabia que eu estaria num café ou livraria qualquer, procurando por algum capuccino que contivesse um aroma ou sabor diferente, ou mesmo um almanaque velho, que sempre se encontravam nas últimas prateleiras das livrarias. Uma vez encontrei um guia de turismo na Itália, dei de presente a Lino, afinal, era dos italianos que Lino descendia e não cabia a mim no grupo uma descoberta precoce da beleza Romana, culinária sciliana e mulheres milanesas. Lino aprendeu algumas receitas que futuramente nos fizeram ir aos céus, comer bem é estar perto de Deus, repetia Lino sempre que fazia o macarrão a gorgonzola.
Quando chegava à porta de Lino, já podia escutar os acordes saídos da vitrola de Sonny, um jazz, cool, Coltrane e nada mais. Gagá sempre estava metida em alguma religião pagã e explicava a alguém que estivesse com paciência suficiente para entrar em nirvana, mantra, suka e etecetera, etecetera. Dado, por ser o mais velho, sempre escutava com atenção, até um dia tentou participar de uma aula de ioga, mas não foi adiante, a professora não permitia que trouxessem bebidas para a academia. Eu não tinha muita paciência com Gagá, aliás, nunca tive muita paciência com as religiões, “você tem que encontrar uma desculpa pra essa merda Alex. Tudo isso tem de ter uma explicação e se não é em Nietzsche, que seja em Jesus”, aconselhava Sonny antes de voltar a escutar os solos de Teddy Wilson.
Metia-me nas reuniões mais para beber e poder ouvir besteiras; as divagações quanto às saídas do capitalismo, a solução para a comunicação, as propostas para o próximo milênio; vez ou outra alguém trazia maconha e, de certa forma, o assunto melhorava. Sonny cuidava sempre da vitrola e de Big Bill Broonzy, Miles Davis, Chu Berry e Benny Carter. Eu cuidava de mim e de um escritor solitário, que vivia entre gatos de várias cores; um ser magro e solitário que residia na minha barriga, contando as palavras.
-Não gosto de repetir essa história
-Mas às vezes é necessário Alex – dizia Gagá – você precisa se prender a algo.
-Minha mãe dizia isso. Você tem que parar de ler essas besteiras; Deusa mãe, pai terra, gaya e etc, que espécie de Deus você acha que vai encontrar? Um senhor de barba branca e raios nas mãos, ou melhor: uma senhora de chapéu pontudo dizendo ser a essência da natureza? Os irlandeses criaram essas porcarias por causa do uísque, se você bebesse menos dessa droga, talvez entenderia que Deus é uma poça d’água, tão comum nos dias chuvosos.
Olhava as construções, as favelas retorcidas, arranha céus, rostos. Naquele tempo os rostos eram menos parecidos, as pessoas tinham mais originalidade, ou não. Gostava de pegar o metrô das onze e meia, era vago, as pessoas que transitavam eram misteriosamente diferentes, continham algum segredo entre os dentes. Eu descobria os sexos e as ações de cada um: o senhor que não conseguia manter o olhar longe do traseiro da doméstica que preferia voltar pra casa em pé - provavelmente por causa do salto, assim mantinha a bunda mais empinada -, a senhora que gostava de passear pela cidade de madrugada, visitando os pontos do metrô, dando para alguns mendigos e vigias. Toda essa cidade pulsava um fluxo único, e eu pensava em Lilá.
Nunca me cansei de suas besteiras, e ela as dizia, sem pudor, perguntava quem era Dostoievski e Kafka, lia Keats e pensava ser Joyce. Todos se mantinham constrangidos e estupefatos, quem teria a coragem de falar tais besteiras? Talvez alguém como Lilá, que pouco tinha a perder e pouco se importava com as opiniões, isso aos poucos conquistou o grupo, que não existia mais sem ela e suas ervas.
-Camomila meu bem.
-Eu não gosto de Camomila.
-Tem de aprender a gostar, lhe fará bem, assim como fez a Sonny.
-Você dormiu com Sonny?
-Dei um chá, apenas. A você que tenho dado outras coisas...
Era sempre no mesmo hotel, na rua da Independência, perto do café image, preço bom, poucas pulgas, desinfetante de limão e algumas camisinhas duvidosas. Depois o cigarro, alguma conversa suspensa sobre os vinhos argentinos, Lilá acreditava na supremacia da uva platina sobre os bons chilenos, “pouco você sabe dos Alpes querida”. Eu a explicara sobre a colheita da uva, os ciclos de frio diferente, o trato e a madeira de que eram feitos os tonéis que continham o sangue de Cristo. Ela se ria, talvez até acreditasse naquela erudição desnecessária, talvez acreditasse em nós ou mesmo em mim.
Os dias em Paris, Londres, Sevilha ou Quixadá, era sempre os mesmos dias onde se firmava as mesmas relações onde o universo era sempre o mesmo universo transverso as nossas idéias onde Lilás era sempre bela besta e burra onde Lino escrevia suas receitas e Sonny cantarolava seu blues onde Gagá rezava para algum ser distante que provavelmente não existia ou existiria em séculos de existência onde eu era eu bem menos do eu.
Alexandre Grecco, 2007.